15 de maio de 2016

O Ser e o Dever-Ser

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Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão, e não vês a trave que está na tua vista? 4Como ousas dizer ao teu irmão: 'Deixa-me tirar o argueiro da tua vista', tendo tu uma trave na tua? Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista e, então, verás melhor para tirar o argueiro da vista do teu irmão. Mateus 7, 3-5.

Criticar os outros é quase sempre negativo; as tais ditas “críticas construtivas” não são mais que uma oportunidade, inconsciente e solapada, para punir e humilhar o outro exaltando-nos a nós próprios; de facto, sempre que humilhamos o outro, exaltamo-nos a nós mesmos, e sempre que nos enaltecemos humilhamos o outro. Há uma humilhação implícita em toda a exaltação.

Contigo em contradição/ pode estar um grande amigo/ livra-te daqueles que estão/ sempre de acordo contigo. António Aleixo

O que distingue uma crítica negativa de uma positiva, é a amizade provada que temos para com a pessoa que criticamos. Só temos “direito” de criticar a pessoa que amamos e na qual reconhecemos valores. E ainda neste caso a crítica vem sempre depois da afirmação desses valores. Se nunca reconhecemos nem afirmámos uma pessoa nos seus valores, não temos nenhum direito de a criticar e se o fazemos, a critica é negativa.

A Psicose geral dos nossos dias
Sem autoconsciência não nos conhecemos, sem autocrítica não há progresso nem crescimento pessoal. Como acima ficou dito, se por um lado é quase sempre negativo criticar os outros, por outro é quase sempre positivo criticar-se a si mesmo. O ser e o dever ser nunca coincidem; o que somos no momento presente e o que estamos chamados a ser no futuro nunca coincidem; é a consciência desta realidade que nos impulsiona a crescer, a progredir.

O amor é como a lua, quando não cresce mingua” - Montados num planeta em movimento, devemos ser conscientes que a nível físico nada na realidade que nos rodeia e que forma o nosso ser é estático. O mesmo acontece a nivele espiritual e moral: quando não estamos a crescer, para ser melhores, estamos a minguar e a tornar-nos cada vez piores.

Viver é como andar de avião; sem o impulso dos motores, para manter a altitude ou subir, inexoravelmente descemos; não existe uma inercia nem uma lei da gravidade que nos impulsione para cima, sempre nos puxa para baixo. Automaticamente, sem esforço e sem autoconsciência, só fazemos o que a nossa natureza animal nos dita pelo instinto, o qual tanto a nível pessoal como social quase sempre é mal.

A morte da consciência
(…) João dizia a Herodes: «Não te é lícito ter contigo a mulher do teu irmão.» Herodíade tinha-lhe rancor e queria dar-lhe a morte, mas não podia, porque Herodes temia João e, sabendo que era homem justo e santo, protegia-o; quando o ouvia, ficava muito perplexo, mas escutava-o com agrado. (…) Herodes, pelo seu aniversário, ofereceu um banquete (…). Tendo entrado e dançado, a filha de Herodíade agradou a Herodes e aos convidados. O rei disse à jovem: «Pede-me o que quiseres (…)  «Quero que me dês imediatamente, num prato, a cabeça de João Baptista.» Marcos 6, 17-26.

Quem não vive como pensa, pensa como vive – Quem, pelo esforço em melhorar, não consegue ajustar a sua vida, os seus atos e o seu comportamento aos ditames da sua consciência moral, acaba por ajustar a sua consciência moral à realidade da sua vida, justificando e racionalizando as suas ações e o seu comportamento. Se assim não fosse acabaria neurótico; para preservar a saúde mental, a luta não pode continuar indefinidamente; ou ganha a evolução ou ganha o status quo; ou ganha o modus vivendi ou ganha a consciência moral. Quem não consegue, ou não quer adaptar a sua vida à sua forma de pensar aos valores morais, acaba por adaptar a sua forma de pensar à sua forma de viver, matando assim a sua consciência moral.

A história da execução de João Batista, pode servir de parábola para ilustrar ou exemplificar a morte da consciência moral de Herodes. Herodes bem sabia que João Batista estava certo, que viver com a mulher do seu irmão era moralmente um erro. João era a consciência moral de Herodes, podia falar, mas não atuar por isso estava preso. Herodes gostava de ouvir a verdade, mas faltava-lhe a vontade para a pôr em pratica; assim andou sem se decidir até que as circunstâncias da vida decidiram por ele.

Psicose coletiva
O resultado da morte da consciência moral, que regula a nossa vida guia e julga os atos de cada dia, é a psicose. O psicótico é uma pessoa fria e cruel sem sentimentos, infringe ou presencia o sofrimento alheio sem compaixão; nos casos mais graves, pode chegar a torturar ou matar sem o mínimo sentimento de culpa ou remorso. A falta de uma consciência moral acusatória, hoje comum a muitas pessoas, poderia ser diagnosticada como psicose coletiva cronica.

Eu não tenho pecados ouvimos os que nos sentamos no confessionário. Por que a nossa vida está focada para a distância, e não para o perto, vemos o argueiro na vista do nosso vizinho e não a trave no nosso olho. A autoconsciência, que é o que nos distingue do resto dos seres vivos que habita o planeta, e que foi o resultado de uma evolução que durou cinco milhões de anos, nem sempre nos assiste. Muito do nosso comportamento, o que dizemos, o que fazemos e até muito do que pensamos, funciona independente da nossa vontade, ou seja, vivemos em piloto automático a maior parte do nosso dia.

Ao encontrar-se dois amigos, depois de algum tempo sem se verem, diz um ao outro; “Ouve lá, disseram-me que vendeste um chanfalho velho ao nosso amigo António por um preço exorbitante, o carro valia muito menos do que lhe pediste, tu enganas-te o homem”. “Não enganei nada, o que eu fiz foi um bom negócio” respondeu o vendedor. Entristecido, e abanando a cabeça num gesto de desaprovação, disse o amigo, “Ouve lá sei que tu és um católico praticante, quando te ajoelhas na confissão, o que é que contas ao padre? “Ao padre”, respondeu o vendedor, “conto-lhe os meus pecados não os meus negócios”

Ainda ontem estavas a sulfatar as couves e hoje já as vais vender? Constata o amigo de um produtor agrícola. Quero lá saber, responde o produtor, não sou eu que as vou comer! - No nosso mundo o lucro pessoal ou coletivo, é um valor que está por cima da saúde pública. Este senhor não come essas couves, mas consome outros produtos agrícolas que são produzidos da mesma forma assim como a comida produzida industrialmente. Quando o lucro está por cima da saúde pública ninguém ganha, e todos perdemos.

O mesmo vale para a fuga aos impostos, um pecado que em 31 anos de sacerdote nunca ouvi ninguém mencionar. Aparentemente ou a curto prazo, quem foge ganha, fica com mais dinheiro na algibeira, mas na realidade a longo prazo, todos perdem incluído o que foge.

O sacramento da autocritica
O sacramento da Penitência, ou confissão, é em si mesmo um exercício de autocrítica. Já poucos o usam e os poucos que o fazem, fazem-no por rotina ou para observar o preceito da Igreja popularmente chamado de “desobriga”, de se confessar e comungar pelo menos uma vez no ano por Páscoa florida. Não o fazem, portanto, por necessidade, e para crescer espiritualmente, mas sim por obrigação.

E porque é por obrigação e rotina, quando se ajoelham diante do confessor, não sabem que dizer e recorrem a uma lenha lenga tantas vezes repetida: matar não matei, roubar não roubei etc. Por mais que tente espiolhar, sem ter a curiosidade morbosa de alguns antigos confessores, não consigo arrancar nenhum pecado pessoal e frequentemente o que ouço são os pecados dos outros, do marido, dos filhos, dos cunhados e das noras, das sogras etc; quantas vezes tenho de parar o penitente na sua lamúria e recordar-lhe que eu não posso perdoar os pecados dos outros mas só os próprios…

Comparo a nossa consciência moral a uma peneira daquelas que todas as mulheres usavam para peneirar, purificar a farinha, retirando-lhe as impurezas, que constituíam o farelo que se dava às galinhas, ficando a farinha branca com a qual se amassava o pão. Quanto mais fina e fechada é a malha, ou rede da peneira, mais pura fica a farinha.

A consciência moral de muitas pessoas do nosso tempo está tão laxa, a rede é tão grossa, ou está tão cheia de buracos que ao peneirar os atos de um dia nada fica na peneira. Não é, portanto, verdade que não tenham pecados, têm-nos e fazem-nos, mas não são conscientes de os ter e de os fazer. O justo, diz a bíblia, peca sete vezes ao dia; sendo o sete o número perfeito significa que peca muitas vezes; quantas não pecaremos nós que somos injustos…

Afogar-se na culpa como Judas
Nas antípodas da consciência laxa, está a consciência escrupulosa; aquela que não se consegue libertar da culpa.

Uma mulher foi um dia ter com o seu pároco e revelou-lhe que Deus lhe aparecia muitas vezes. O pároco incrédulo, para confirmar a veracidade das aparições ou ironicamente para gozar com a senhora, autorizou-a a perguntar a Deus pelos seus pecados, pensando para consigo, “só Deus conhece os meus pecados, se ela me relatar algum então terei que acreditar nas aparições”. A senhora, tomando em sério a proposta do pároco sem se aperceber da ironia, foi-se embora. Passados uns dias voltou à presença do pároco e este com ar de troça perguntou; “então Deus voltou a aparecer-lhe”? “Voltou sim senhor”, respondeu ela, “e a senhora perguntou-lhe pelos pecados”? “Perguntei sim senhor padre” disse ela; “e que disse Deus”? Inquiriu o pároco, “a respeito dos seus pecados senhor padre, Deus disse-me que já se tinha esquecido”.

 Não há miséria superior à misericórdia divina. Deus perdoa-nos e esquece, passa página coisa que nós não fazemos. Deus que nos conhece melhor do que nós nos conhecemos, que nos ama mais que nós a nós mesmos, por muita que seja a nossa autoestima, também nos perdoa muito mais do que nós nos perdoamos a nós mesmos.

Ao fim de uma guerra fratricida entre hindus e muçulmanos, nos alvores da independência da India, um hindu veio ter com Gandhi para que ele o ajudasse a libertar-se da sua culpa. Contou que um dia, durante a guerra, entrou numa casa muçulmana onde se encontrava uma mulher que ia dar de mamar a um bebé, que lhe retirou o bebé e o arremeçou contra a parede da casa. A imagem do bebé esmagado contra a parede e o seu sangue a escorrer, dizia, persegue-me para onde quer que vá, eu vivo num inferno… Gandhi, para o livrar da culpa, propôs-lhe adotar um bebé muçulmano, dos muitos que ficaram órfãos com a guerra, e de o educar na religião muçulmana.

Nos meus 31 anos de ministério, não foram poucas as mulheres que à idade de oitenta e tantos anos ainda confessavam obsessivamente, uma e outra vez, o aborto que tinham cometido quando eram adolescentes. O escrupuloso acredita mais num Deus vingativo, à maneira humana, que num Deus amor. É uma ofensa a Deus não acreditar no seu perdão, quando Deus não sabe fazer outra coisa…

Anulou o documento que, com os seus decretos, era contra nós; aboliu-o inteiramente, e cravou-o na cruz. (Colossenses 2, 14).

Deus perdoa e esquece, como sugere São Paulo, destrói a fatura da nossa dívida para não mais se recordar dela; somos nós, que pela nossa natureza, não nos conseguimos perdoar nem esquecer.

O purgatório, do qual a bíblia não fala diretamente, foi criado por Deus, não porque Ele precise de que expiemos a nossa culpa, mas sim porque nós precisamos.

Reconhecer e chorar o erro como Pedro
 (Ante a quantidade de peixes resultante da pesca milagrosa) Simão caiu aos pés de Jesus, dizendo: «Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador”. (Lucas 5, 8)

In medio vírtus” – Entre o extremo da consciência moral laxa, e a consciência moral escrupulosa, está a consciência recta de Pedro, que nem é laxa, nem escrupulosa. Pedro, tem ante Deus a atitude correta; reconhece-se pecador ao ver os poderes de Deus manifestados em Cristo Jesus a quando da pesca milagrosa.

O episodio da pesca milagrosa vem provar que não foi a negação do mestre, pecado equivalente ao de Judas, que lhe deu a Pedro a consciência de ser pecador; Pedro sempre se teve como tal, consciente de que ante Deus não há justos.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de maio de 2016

O Rico e o pobre Lázaro

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Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e fazia todos os dias esplêndidos banquetes. Um pobre, chamado Lázaro, jazia ao seu portão, coberto de chagas. Bem desejava ele saciar-se com o que caía da mesa do rico; mas eram os cães que vinham lamber-lhe as chagas. Ora, o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão.

Morreu também o rico e foi sepultado. Na morada dos mortos, achando-se em tormentos, ergueu os olhos e viu, de longe, Abraão e também Lázaro no seu seio. Então, ergueu a voz e disse: 'Pai Abraão, tem misericórdia de mim e envia Lázaro para molhar em água a ponta de um dedo e refrescar-me a língua, porque estou atormentado nestas chamas.' Abraão respondeu-lhe: 'Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em vida, enquanto Lázaro recebeu somente males. Agora, ele é consolado, enquanto tu és atormentado. Lucas 16, 19-31

Na única “história aos quadradinhos” que Jesus contou, observamos reversão de cenários de vida e fortuna entre dois homens na sua passagem de este mundo para o outro. No primeiro quadradinho observamos um o céu de luxo e prazer do rico em contraste com o inferno também temporal de penúria e sofrimento do pobre Lázaro. No segundo quadradinho no qual tantos os papeis como os cenários são invertidos: O rico que vivia num Ceu temporal de prazer insolidário, vive agora no eterno inferno de penúria e sofrimento, ao contraio o pobre Lázaro que vivia na penúria a e no sofrimento vive agora no eterno céu de abundancia e consolação.

A morte, que na natureza não existe mais que como passagem entre duas diferentes formas de vida, também aqui é apresentada como ponte entre o quadradinho da vida na terra e o quadradinho da vida no céu. Contrariamente ao que a maioria pensa, a morte não é o grande raseiro, que a todos nos faz iguais. No entender da parábola, contada por aquele que um dia disse, “pobres sempre os tereis convosco” (Jo 12,8), as desigualdades sociais que encontramos na terra vamos encontra-las invertidas no céu. Por isso, a igualdade social é a utopia que em todo momento e lugar deve inspirar e guiar a nossa ação.

O pobre que se senta à nossa porta
A parábola não nos diz o nome do rico, não tem identidade humana porque é definido pelo seu modo de vida, como ainda hoje se definem muitos ricos:

Vestia de púrpura e linho fino – O rico não tem nome porque a sua identidade não é definida de dentro para fora, mas de fora para dentro. É a púrpura e o linho fino que o definem, o seu estatuto é-lhe conferido pelo tipo de roupa que veste. Quem se sente um Zé Ninguém usa certos subterfúgios para vestir o vazio da sua alma: a roupa de marca, telemóvel ultima geração, carro topo de gama…

Muitos adolescentes, nas nossas escolas, em vez de buscarem o prestígio no desempenho moral e académico, buscam-no na roupa de marca. Compram camisolas caras, que exibem no peito um determinado logotipo de exageradas dimensões. Caro lhes fica o tal “prestígio” que buscam, pois além de terem comprado bem cara a camisola, ainda fazem publicidade gratuita à marca sempre que a vestem. Eles exibem-se à custa da marca, a marca faz-se pagar bem e ainda se exibe á custa deles. No fim não sei quem ganha mais os adolescentes ou a marca.

 Fazia todos os dias esplêndidos banquetes – O pobre tem banquetes muito de vez em quando, o rico é todos os dias. O pobre diverte-se de tempos a tempos, o rico vive para se divertir. Não vive a vida, goza a vida, consome a vida que para ele não é mais que um passatempo.

O rico não é criticado por ser rico, mas por ser insolidário; as riquezas no evangelho têm o mesmo valor que os talentos, não são para ser possuídas, mas para ser usadas para o bem comum, pelo que devem ser bem administradas. Quanto maior é o poder económico de um individuo, maior é a sua responsabilidade social. Como recorda o evangelho, a quem muito lhe foi dado muito lhe será exigido (Lc 12,48). O pobre que se senta à nossa porta, ou que se cruza no nosso caminho, nem sempre é o que necessita de pão e vestido; às vezes só necessita que lhe demos tempo e ouvidos; muitas são as necessidades da pessoa humana e muitas são as formas de ajudar.

Para o rico, Lázaro não era mais que um aspecto da paisagem à qual se tinha acostumado. O seu modo de vida na opulência tinha-o anestesiado, insensibilizado perante a miséria e o sofrimento do que jazia à sua porta. Ao contrário do rico, a parábola diz-nos o nome do pobre, Eleazar que em hebreu significa “Deus ajuda”. Sozinho, sem sustento e doente, este pobre está às portas da vida, do lado de fora, na esperança de poder alimentar-se com as migalhas caídas da mesa farta do rico, mas nem isso lhe é dado. Jesus, o autor da parábola, termina a primeira vinheta ou quadradinho dizendo que os cães vinham lamber as chagas ao pobre Lázaro. Os humanos têm para com Lázaro uma atitude inumana e irracional; ao contrário os cães, seres irracionais, têm para com o pobre uma atitude “humana”.

Na verdade, ele tomou sobre si as nossas doenças, carregou as nossas dores. (…) Ferido por causa dos nossos crimes, esmagado por causa das nossas iniquidades. O castigo que nos salva caiu sobre ele, fomos curados pelas suas chagas (Isaías 53, 4-5).

Segundo o canto de Yaveh de Isaías, as chagas de Cristo têm para nós poder curativo. Da mesma forma, a salvação do rico estava nas chagas do pobre Lázaro, porque como diz Mateus 25, o que fizestes a um destes pequeninos foi a mim que o fizestes. “Quem dá aos pobres empresta a Deus” diz o ditado. De facto se os ricos salvam os pobres nesta vida, são os pobres que salvam os ricos na vida futura. São os cães que se aproveitam das propriedades curativas das chagas. Recordemos que os judeus chamavam cães aos pagãos; são precisamente os pagãos que se salvam pelas chagas de Cristo.

Vale de prazeres – Vale de lágrimas
Eventualmente a morte chega para os dois, e como ela a parábola apresenta-nos o segundo quadradinho ou vinheta. Lázaro, que antes vivia num “vale de lágrimas”, passa agora a viver num “vale de prazeres”; ao contrário o rico, que vivia num “vale de prazeres”, passa agora a viver num “vale de lágrimas”. Invertem-se os cenários com a diferença de que na primeira vinheta tanto as lágrimas como os prazeres eram temporais; “não há mal que sempre dure nem bem que sempre ature”, na segunda os prazeres e as lágrimas são eternos.

Existe uma fatalidade na forma como a morte do rico é descrita; morre e é sepultado, como para dizer para ele acabou tudo. O inferno é, portanto, a morte eterna que se contrapõe á vida eterna. As poucas vezes em que, como aqui, na biblia aparece como sofrimento eterno tem um valor pedagógico de nos meter medo, como os pregadores antigos faziam baseados no facto de que temos mais medo do sofrimento que da morte.

Como quase sempre acontece “a morte abre os olhos aos vivos”. De facto o rico, que anteriormente não conseguia ver Lázaro, agora vê-o perfeitamente. Mas continua ainda egoísta; antes não via o pobre porque este não tinha nada para lhe dar, agora, vê-o porque precisa dele. Muitos de nós vemos a vida e as relações humanas como um grande buffet; relacionamo-nos com os outros, não pelo que lhes possamos aportar, mas, pelo que estes possam contribuir para uma melhoria na nossa vida.

O que antes se revestia de linho fino está agora revestido de chamas; e é no meio delas que se lembra de que tem Pai e irmãos e quer que Lázaro seja enviado para os salvar. Abraão refere-lhe que têm os mesmos meios que ele tinha para se salvar, a Lei e os Profetas, que Jesus resume em amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo.

Pensa o rico que se Lázaro ressuscitasse, os seus familiares iam acreditar nele e mudar de vida. Contrariamente a esta crença, sabemos muito bem que quando Jesus ressuscitou um Lázaro, não levou os judeus a acreditarem mais nele, apenas os levou a decidir matar o recém-ressuscitado Lázaro juntamente com Jesus.

A fé continua a ser a única porta para a salvação, não vai haver nenhum sinal do outro mundo, nenhum milagre que prove de forma irrefutável a verdade destas coisas; pela fé vivemos e na fé nos salvamos, não há garantias científicas, nunca as haverá, de que Deus existe e que sustem a vida dos que têm fé aqui agora como a susterá depois da nossa morte.

O pobre que se assoma à nossa janela
O ano passado a Oxfam informou, no Fórum económico Mundial em Davos na Suíça (21-24 janeiro 2015), que este ano 1% da humanidade possuirá mais riqueza que o resto dos 99%. Mais concretamente 1% da humanidade possuirá 54% da riqueza mundial, o resto dos 99% possuirão 46%.

Uma realidade que nos faz pensar… Depois de tanto progresso cientifico e técnico, a raça humana progrediu bem pouco em humanidade, o abismo cada vez maior entre os ricos e os pobres prova inequivocamente que, na raça humana, o que verdadeiramente guia e inspira o comportamento não é a inteligência nem a bondade, como seria desejável, mas sim o instinto egocêntrico e irracional que temos em comum com os animais.

Ao longo da historia da humanidade, a inteligência humana parece ter estado mais ao serviço do egoísmo que do altruísmo; o homem parece que é mais criativo para o mal que para o bem, só desta forma se explicam tantos factos como o holocausto dos judeus, e tantos outros genocídios (o aborto, os crimes de guerra e a própria guerra…). Temos que concluir tristemente que a raça humana supera os animais, não só na sua racionalidade como também na sua irracionalidade.

Nos países pobres ainda se morre de doenças que há muitíssimos anos têm cura: a lepra, a febre tifóide, a tuberculose, e todas as conectadas com a falta de higiene, água potável e alimentação precária… Nos países ricos morre-se pelo excesso de consumo; nos países pobres morre-se por falta de consumo do imprescindível.

Se partilhássemos nem os pobres morriam da pobreza nem os ricos da riqueza. Eramos todos mais saudáveis...

As leis ou o sistema que fez isto possível é simplesmente injusto. O fosso entre os ricos e os pobres vai sempre aumentando. Como o planeta não permite que todos vivam como nós vivemos, há mecanismos que fazem com que os ricos nunca percam a sua riqueza, e o seu nível de vida, e os pobres como Lázaro sejam sempre pobres e não possam sair da sua pobreza, porque se saíssem e consumissem tanto quanto nós consumimos o nosso planeta depressa se tornaria inabitável.

Uma e outra vez se reúnem as potências mundiais para discutir as mudanças climatéricas, que são um sintoma de que o nosso planeta está doente e a doença é provocada pelo nosso abuso dos seus recursos, e pouco se tem conseguido.

Todos sabemos quais serão as consequências e, no entanto, não conseguimos travar os comportamentos que inexoravelmente nos estão a levar a um suicídio coletivo. Há um mês a cidade de Pequim declarou pela primeira vez alerta vermelho, fechou as escolas e os edifícios públicos; o ar estava tão contaminado que além de ser irrespirável dificultava a visibilidade.

O facto de a pobreza ser um problema global cada vez mais difícil de resolver porque o fosso que separa os ricos dos pobres é cada vez maior, não deve motivar a nossa inação. Deus não me vai pedir contas pelos pobres do mundo, mas por aquele que se senta à nossa porta ou se cruza no nosso caminho.
Pe. Jorge Amaro, IMC