15 de abril de 2016

O Bom Samaritano

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Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante.

Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: 'Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar.'

Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?» Respondeu: «O que usou de misericórdia para com ele.» Jesus retorquiu: «Vai e faz tu também o mesmo.» Lucas 10, 25-37

A segunda parábola mais conhecida depois do Filho Pródigo, é sem duvida a do Bom Samaritano. De tal forma esta parábola influenciou a cultura ocidental que hoje o termo “samaritano”, mais que referir-se a um habitante da Samaria, aplica-se a toda a pessoa que é solidária, se compadece e ajuda os que estão em dificuldades.

Como ganhar a vida eterna
A parábola está inserida no contexto do diálogo que Jesus tem com um doutor da lei que o interpela sobre o que deveria fazer para ganhar a vida eterna. Jesus, tal como um bom psicoterapeuta não diretivo, ao estilo de Rogers, ajuda-o a buscar ele mesmo a resposta à sua pergunta remetendo-o para a sua leitura da Lei. O doutor da lei diz em resposta o que Jesus quer ouvir; ou seja, em vez de mencionar leis concretas, dá ao amor o estatuto e a importância de uma lei, assumindo que Jesus faria isso mesmo.

A resposta do doutor da lei sintetiza o Antigo Testamento, a Lei e os profetas, ao unir o amor a Deus, descrito no livro do Deuteronómio (6, 4-8), como o amor ao próximo, descrito no livro do Levítico (19, 18). A esta síntese Jesus limitou-se a aprovar dizendo faz isso e viverás; viverás aqui e agora segundo a Lei e entrarás na vida eterna.

Se alguém disser: «Eu amo a Deus», mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. 1 João, 4,20

Com este texto podemos concluir que o amor a Deus que não se verifica e manifesta no amor ao próximo, não é real nem genuíno; porem, como diz o evangelho, só podemos verdadeiramente amar o próximo, quando entendemos que o fazemos aos outros, o estamos a fazer a Deus. 'Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes. (Mateus 25, 40)

Desta forma estamos de volta ao amor a Deus comos sendo o primordial e o mais importante, porque só quando vemos a Deus como Pai a que vemos o outro como nosso irmão. Se Deus não é Pai de todos, então o meu próximo não é meu irmão, mas sim meu rival, meu inimigo, a quem temo invejo ou odeio. Por melhor que estejam na vida os nossos irmãos de sangue, não os invejamos, da mesma forma quando verdadeiramente amo a Deus como Pai, todas as pessoas que me rodeiam, grandes e pequenos, de perto ou de longe, são meus irmãos de sangue porque Deus é Criador e Pai de tudo e de todos.

Cristianização da gramática
Quem é o meu próximo? – Tal como os outros doutores da lei que vieram ter com Jesus, também este não veio com a intenção de enfatizar a doutrina de Jesus. A primeira pergunta que faz a Jesus é só a preparação da segunda, na qual pretende denunciar o facto de Jesus não aceitar diferenças entre as pessoas. Portanto, a segunda pergunta deixa supor que há pessoas que podem ser consideradas como próximo e outras, pelo contrário, não. E assim era para os Judeus; eles eram o povo escolhido por Deus, por isso para eles o próximo era o que era da sua mesma tribo e religião; os outros eram gentios, pagãos e como tal não podiam ser tidos como próximo para um Judeu.

 Para Jesus não existe diferença entre pessoas. É o que tenta explicar com a parábola do bom samaritano. Em pleno deserto de Judá jaz um ferido; ninguém o conhece; não se sabe nada dele; o rosto desfigurado, pelo que não podemos ler as feições do seu rosto para o definir etnicamente; meio morto, pelo que não pode falar para sabermos que idioma fala ou que dialeto ou sotaque tem; talvez despojado meio nu, pelo que não sabemos como veste para saber quais são os seus usos e costumes e poder identificá-lo. Jesus não menciona nenhum destes detalhes, porque para Ele não são importantes, a única coisa que é clara é que é um ser humano, isso é o único que conta. A dignidade não está subjugada a diferenças étnicas, linguísticas ou politicas, mas simplesmente ao facto de ser um ser humano.

Deus é Pai de todos pelo que quando rezamos o Pai Nosso, ninguém deveria ficar excluído do pronome “nosso”. Aliás se levássemos a nossa fé até às últimas consequências, modificaríamos a gramática e aboliríamos todos os pronomes pessoais ficando só com três, pois trinitária é a nossa fé; Eu + Tu = Nós.

Começando por mim pois me reconheço com um ser livre autónomo, distinto de tudo e de todos os que me rodeiam; seguidamente, olhando à minha volta e reconheço um alter ego, um Tu, diferente de mim, mas de igual dignidade; por fim, o facto de precisarmos um do outro, e de termos iguais direitos e deveres, faz surgir uma terceira entidade o “Nós” ou seja o eu e o tu juntos; para alem destes, os restantes podemos descarta-los por ser discriminativos.

Os pronomes “Ele” e “ela” “Vós” e “Eles” estabelecem distinções que ao ser irrelevantes quanto á dignidade da pessoa humana, abrem o passo para a discriminação que pode até estar camuflada no reconhecimento objetivo de diferenças entre pessoas. Uma vez mais, como cristãos que somos, o nosso, do Pai Nosso, deve englobar toda a gente sem distinção e discriminação.

Anatomia geográfica
A ciência diz-nos que o ser humano vem de um tronco comum. Com a filosofia grega na mente, verificamos que a dignidade da pessoa humana está ligada à essência e não aos acidentes. O que Jesus quer que este doutor da lei entenda é que as diferenças étnicas, de género, de posição social, de classe, de cor da pele, de tipo de cabelo etc., são acidentes, ou seja, são formas de existir e nada têm que ver com a essência pois não a alteram. Como a dignidade da pessoa humana provém da essência e não dos acidentes, Jesus conta a parábola na esperança que o seu interlocutor conclua por ele mesmo que o próximo, de cada pessoa humana, é toda a pessoa humana.

Nascidos de um tronco comum, há cinco milhões de anos no vale de Rift na África, as características fisiológicas, que apresentam os seres humanos de hoje, devem-se às condições morfológicas e climatéricas do meio ambiente em que habitaram por muitos milhares de anos. Por exemplo, a cor da pele é proporcional à distância do equador; quanto mais perto mais preta, quanto mais longe mais clara; os Congoleses são os seres humanos mais pretos, os Marroquinos são mais claros que os Congoleses, os Portugueses mais claros que os Marroquinos e os Noruegueses mais claros que os Portugueses.

Com a distância do equador tem que ver também a cor dos olhos e do cabelo; no norte da Europa proliferam os azuis, no centro os castanhos, no Sul os pretos; o mesmo vale para a cor do cabelo; no norte da Europa é louro, no centro castanho, no sul preto. O tamanho do nariz tem que ver com a temperatura do ar; além de o filtrar, o nariz tem também a função de o aquecer, pelo que nos países frios as pessoas têm um nariz maior.

Também tem que ver com a temperatura e incidência do sol o cabelo encaracolado e o cabelo liso. O cabelo encarapinhado dos africanos forma uma caixa de ar a qual permite que o ar circule, protegendo assim a cabeça dos raios solares e do calor. Por fim os olhos dos asiáticos tem que ver com o clima extremo das estepes asiáticas; no inverno muito frio e muita luminosidade, no verão muito vento e pó.

A revolução francesa “avant la lettre”
No ocidente, foi a revolução francesa instituiu a ideia que tem sido a pedra angular da democracia de que pelo nascimento e perante a lei, somos todos iguais; desta forma não há escravo nem senhor, nem nobre e plebeu. No entanto muito antes de sermos iguais perante a lei já eramos iguais perante Deus.

Se observarmos atentamente, verificamos que os ideais da revolução francesa, não são verdadeiramente descoberta dos revolucionários, mas já estavam implícitos no mandamento do amor, a Deus e ao próximo.

Liberdade – Está implícita no mandamento do amar a Deus sobre todas as coisas; só quando amamos a Deus sobre todas as coisas, e sobre todas as pessoas, é que colocamos ordem e hierarquia no nosso coração e somos verdadeiramente livres. Ao prestar vassalagem a um ser Transcendente transcendo-me, coloco-me por cima de todos as coisas que não são Deus; assim e só assim sou verdadeiramente livre.

Igualdade – Está Implícita no mandamento do amar ao próximo como a mim mesmo; o outro é um alter-ego, um outro eu de onde vem o conceito de altruísmo. Não é um estranho, portanto, mas sim uma pessoa de igual dignidade, iguais direitos e deveres. Como me amo a mim mesmo assim devo amar o outro que está na minha frente, nem mais nem menos; a medida da minha autoestima é a medida do meu amor pelo outro, pelo que não há melhor afirmação de igualdade que esta.

Fraternidade – Esta palavra é uma derivação de “frater” que em latim significa irmão. Uma das marcas do cristianismo é o considerar que Deus é Pai de todos, o qual nos faz a todos seus filhos e portanto irmãos entre nós. Por isso tudo o que faço, de bem ou de mal, a um irmão o estou a fazer; e por outro lado, como diz Mateus 25, a Cristo o nosso irmão mais velho o estou a fazer.

Fraternidade é ao mesmo tempo sinónimo de amor ao próximo e de igualdade, pois tendo em mente o conto do Príncipe Encantado que se apaixona pela gata borralheira ou Cinderela, há proverbio que no assegura que “O amor ou nasce entre iguais ou faz as pessoas iguais”. Assim sendo, podemos concluir que igualdade e fraternidade são uma e a mesma coisa. A fraternidade leva á igualdade e a igualdade leva à fraternidade. A liberdade, ou o amor a Deus é o alicerce da vida humana na sua vertente individual; a igualdade ou o amor ao próximo, o alicerce da vida humana na sua vertente social; Uma não existe sem a outra

Ante o dito é inadmissível que existam castas, como na Índia, e que estas ainda hoje pautem as relações entre pessoas a ponto de não serem iguais perante a lei. Como também é inadmissível que os muçulmanos considerem infiéis a todos os que não adoram o seu deus e não se comportam segundo a lei da Sharia.

Religião como opio
Discordamos de Karl Marx quando diz que a religião é o ópio do povo. A religião em si não é ópio, mas a sua pratica pode ser. Uma religião que crie diferenças entre as pessoas, que me leve a relacionar-me com elas diferentemente é opio do povo; porque me aliena, aliena outros e cria ódios e contendas. Uma religião que me afasta dos outros, que desumaniza, que me impede ajudá-las e que busca desculpas para não o fazer é ópio. Uma religião que não me ensina o caminho para sair da minha zona de conforto, do meu egocentrismo, não é sequer uma religião. Religião vem de “religare” relação, a verdadeira religião é a que motiva o maior número de relações possíveis e todas elas baseadas no amor.

O sacerdote e o Levita passam de largo para não serem contaminados e poderem praticar a sua religião, oferecer sacrifícios no templo; por isso têm desculpa, têm alibi; a própria religião os proíbe de fazerem o bem; uma religião que é ópio funciona assim, justifica, ilumina e fundamenta ideologicamente o egoísmo e a inatividade, acabando até por matar a compaixão que surge natural, quando presenciamos o sofrimento humano e até mesmo o sofrimento de um animal. Uma religião assim é uma superestrutura, na linguagem de Karl Marx, que desumaniza o ser humano.

O sacerdote e o levita, algo assim como o padre e diácono nos nossos tempos, são por sua natureza pontífices; ou seja, pontes entre Deus e os homens. A sua função é a de interceder a Deus pelos seus semelhantes; levar Deus aos homens e os homens a Deus. Estes clérigos ficaram-se com a teoria, iam certamente para o templo para interceder pelos homens, mas por um homem genérico inexistente, pois homem era aquele que viram a precisar de ajuda e passaram de largo. A sua religião era ópio e ideologia, pois em vez de os aproximar dos homens e mulheres concretos distanciava-os deles.

A compaixão vem de quem menos se espera, de um homem de negócios, em quem normalmente se presume a ganância e busca do proveito próprio em todo tempo e lugar. Um para quem o tempo é dinheiro e todas as atividades devem ser lucrativas. Sendo um homem de negócios, se alguém tinha “desculpas” para passar de largo era o samaritano, e, no entanto, é precisamente ele que pára e coloca de lado a sua agenda e atende o desafortunado.

Talvez por não ser religioso, o sentimento natural de compaixão não estava anulado ideologicamente pelo que, anacronicamente, é precisamente nele que vemos a compaixão e a misericórdia, atributos de Deus que não os vemos nos religiosos, o sacerdote e o levita, que teoricamente mais perto de Deus, mais deveriam ser como Ele.

O samaritano não só sente compaixão, mas atua com base nessa compaixão; muitos há que sentem e nada fazem. A sua compaixão faz com que coloque o seu programa de lado, não só oferece tempo, a sua montada e ele vai a pé, mas abre os cordões à bolsa, e paga por ele o equivalente ao ordenado de dois dias e comprometendo-se a pagar ainda mais caso fosse necessário. O samaritano é-nos apresentado como um ícone vivo da misericórdia divina, um exemplo que o próprio Cisto nos convida a seguir.

Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericordiae Vultus Papa Francisco.
Pe. Jorge Amaro, IMC



1 de abril de 2016

Perdidos & Achados - Os dois filhos

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A parábola do filho pródigo é sem lugar a dúvidas, a narrativa mais notável de todos os tempos. É realmente uma obra-prima e de alguma forma o ex libris do Evangelho. Para além de “Parábola do filho pródigo” é também chamada a parábola dos dois filhos, pois a atitude pouco louvável do filho mais velho, é parte integrante da história; por esta mesma razão outros chamam-lhe O menos mau de dois maus filhos, e por fim, retirando o protagonismo aos dois filhos para o dar ao Pai, também há quem lhe chame a parábola do Pai Misericordioso.

Disse ainda: «Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao pai: 'Pai, dá-me a parte dos bens que me corresponde.' E o pai repartiu os bens entre os dois.

Disse ainda… - Jesus introduz esta parábola ligando-a às duas precedentes, a da ovelha e da dracma perdidas. Uns perdidos em casa dentro do rebanho:  a dracma, o filho mais velho e as 99 ovelhas que simbolizam os fariseus; outros perdidos para fora do rebanho, a ovelha perdida e o filho pródigo, que simbolizam os publicanos, as prostitutas e os pecadores em geral; para Jesus tanto uns como outros, todos são pecadores necessitados de perdão, doentes necessitados de cura. Na verdade, como diz a Escritura, Todos nós andávamos errantes como ovelhas perdidas, cada um seguindo o seu caminho. Mas o Senhor carregou sobre ele todos os nossos crimes (Isaías 53,6). Cristo morreu por todos porque todos eramos pecadores.

'Pai, dá-me a parte dos bens – Segundo a lei Judaica, um pai não podia dispor da sua propriedade como quisesse. O filho mais velho tinha direito a dois terços e o mais novo a um terço da propriedade (Deuteronómio 21:17). Nesta terceira parábola o drama acentua-se, não se trata já da perda de uma ovelha, um dracma, nem mesmo de parte da propriedade; o que preocupa este pai é a perda do filho. Para entender a aflição daquele pai, recordemos a angústia de Jacob quando julgou ter perdido José, o seu filho mais novo e preferido, por ser filho de Raquel a mulher que ele amou à primeira vista e por quem teve de trabalhar 14 anos.

O drama deste pai, implícito na parábola, é a ingratidão do seu filho mais novo. Pedir a herança antes da morte, da sua morte, é como dizer-lhe: “Para mim já morreste por isso herança deve ser repartida; não vales pelo que és, ou por quem és para mim, mas pelo que tens, como não quero viver contigo não vou ficar aqui à espera da tua morte, quero o que me pertence já”.

E o pai repartiu os bens entre os dois – Apesar de profundamente ofendido pela ingratidão do seu filho, o pai não discute, nem tenta convence-lo de que está a proceder mal; sabe muito bem que o que ele não lhe conseguiu ensinar com amor a vida lho ensinará com dor; o erro e o sofrimento como consequência é muitas vezes parte integrante do processo de aprendizagem. De facto, aprendemos mais com os nossos erros de que com os nossos acertos; neste sentido “Não há males que por bem não venham”.

No respeitar a liberdade do homem, revela Deus Todo-Poderoso a sua impotência. Como não se pode obrigar um adulto a fazer o bem, tal como Deus, quantos pais contemplam como os seus filhos destroem as suas vidas, pelo vício ou a preguiça, sem nada poderem fazer.

Não há mulheres nesta parábola porque as mulheres naquele tempo nem possuíam bens nem eram herdeiras deles; mas vemos um pai com atitudes e rasgos que tradicionalmente são mais próprios de uma mãe, pelo que podemos dizer que a mulher, o caracter feminino, está também presente nesta parábola.

Poucos dias depois, (…) juntando tudo, partiu para uma terra longínqua e por lá esbanjou tudo quanto possuía, numa vida desregrada. Depois de gastar tudo, (…) começou a passar privações. (…) E, caindo em si, disse: 'Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome!

Caindo em si - Foi preciso cair bem fundo para cair em si e se dar conta da sua situação; passar fome, descer à condição de guardador de porcos, animal impuro por excelência, e nem sequer ter acesso às alfarrobas que estes comiam.

Deus intimior intimo meo est- Deus está para além do meu intimo; pelo que o caminho para Deus passa pelo profundo do meu ser; quando caminhamos para Deus caminhamos para uma maior consciência de nós mesmos; ao contrário, quando voltamos as costas a Deus, como o filho pródigo fez, voltamos as costas a nós mesmos; fora de si como os drogados, os alcoolizados, andou desvairado enquanto fugia de Deus e de si mesmo.

Não aceitava a sua realidade de ser filho de Deus, pelo que de certa forma, voltou à “animalidade”, ao tempo em que os seres humanos ainda primitivos não tinham consciência de si mesmos lá longe na evolução das espécies. Possuídos por uma paixão ou por um vício, quando fazemos o mal andamos fora de nós mesmos; perdemos a autoconsciência, o autocontrole, e a identidade.

Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e vou dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros.' E, levantando-se, foi ter com o pai.

Decide voltar não tanto porque estivesse arrependido, mas porque tem fome… primum vivere deinde filosofare… ao voltar ainda está à procura do seu interesse; volta porque tem fome e precisa de mais bens; não volta por saudades do pai, mas porque na sua casa até os servos estão melhor do que ele como guardador de porcos. Não é digno de ser filho, diz no seu discurso em preparação, e não parece interessado em ser filho.
   
O filho pródigo queria impor-se uma penitência; queria de alguma forma fazer restituição, compensar pelo que ele fez, mas o pai não o deixa concluir o discurso que tinha preparado de antemão, e detém-no após ter escutado a sua confissão.  Deus não precisa de nossa restituição e da nossa penitência para nos perdoar; Deus perdoa e esquece. Mas então e o purgatório? É uma necessidade da nossa natureza e não de Deus; porque Deus perdoa-nos mais facilmente e mais depressa do que nós nos perdoamos a nós mesmos.

Quando ainda estava longe, o pai viu-o e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o de beijos. O filho disse-lhe: 'Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho.' Mas o pai disse aos seus servos: 'Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha; dai-lhe um anel para o dedo e sandálias para os pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado.' E a festa principiou.

Ao longe não é o filho que vê o pai, mas o pai que vê o filho por quem estava à espera, pois nunca deixou de o esperar, nunca se esqueceu dele e refez a sua vida, como se costuma dizer; ao contrário nunca o deu por perdido, nunca prescindiu dele e viveu na esperança de que ele um dia ia voltar. O lugar que ocupamos no seio de Deus não pode ser ocupado por mais ninguém e fica sempre vazio até que regressemos a Ele.

O filho fez um pouco de estrada em direcção ao pai e a ele mesmo, mas foi o pai quem mais estrada fez; pois foi ele que nunca o deu por irremediavelmente perdido, nunca o esqueceu, sempre esteve de atalaia à sua espera, e quando o filho se apresentou como jornaleiro ele sem ressentimentos e cheio de compaixão recebeu-o como filho. Abraça-o, não se abraçam jornaleiros, beija-o como a um filho e de igual para igual pois não o deixa ajoelhar-se, depois coloca-lhe um anel de herdeiro com o selo do poder; veste-lhe a veste melhor de filho predilecto, como Jacob fez com José. Por fim mata o bezerro mais cevado e é festa.

Ora, o filho mais velho (…) ouviu a música e as danças. Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo. Disse-lhe ele: 'O teu irmão voltou e o teu pai matou o vitelo gordo, porque chegou são e salvo.' Encolerizado, não queria entrar;

O filho que pecou aprendeu uma lição; quantas vezes precisamos de nos ver privados das coisas para nos darmos conta do seu valor. O filho mais novo entendeu o que era o amor do pai porque o negou e porque fugiu para longe dele. O filho mais velho nunca chegou a entender. É precisamente neste sentido que Sto. Agostinho desenvolve a sua teologia da “Felix culpa” referindo-se ao pecado de Adão, e Lutero agrega o seu paradoxo “pecca fortiter”; se pecas peca forte pois só um pecado forte, é motivo para uma forte conversão. A “peccata minuta” do filho mais velho não o demoveu da sua vida também pecaminosa.

'Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos; e agora, ao chegar esse teu filho, que gastou os teus bens com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo.' O pai respondeu-lhe: 'Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado.'» Lucas 15, 11-32

O pecado do filho mais novo foi rejeitar a paternidade do seu pai, o pecado do filho mais velho é o mesmo; também ele não se considera como filho mas como jornaleiro, entendendo o seu pai um capataz justiceiro pelo que lhe obedece não por amor mas por medo. Tal como o jovem rico e os fariseus nunca transgrediu um só mandamento. Cumpriam só a letra da lei porque, como bem dizia Jesus, o seu interior estava cheio de imundícia como fica claro pela forma como o filho mais velho descreve a vida dissoluta do seu irmão. O filho mais velho é, de alguma forma, como os que só se comportam bem diante da polícia e da autoridade; patrão fora dia santo na loja

Um filho verdadeiro partilha a vida e os bens com o pai e comporta-se segundo a “liberdade dos filhos de Deus” (Romanos 8,21). Por isso não precisava de pedir um cabrito pois dispunha da herança que é devida aos que são e se comportam como filhos de Deus (Mateus 25).

De como o filho pródigo gastou o dinheiro não o sabemos do narrador mas do filho mais velho; em todo o texto não se fala de prostitutas até o filho mais velho as mencionar apelando à possibilidade de que o pai fosse puritano e rigoroso contra este tipo de pecados. Há uma certa moralidade católica que julga toda a matéria sexual como pecaminosa e que faz a vista gorda aos pecados de justiça social.

Por outro lado, se psicanalisamos o enfase que o filho mais velho dá à forma como o seu irmão gastou o dinheiro chegamos à conclusão que afinal o filho pródigo só fez o que o irmão mais velho sempre quis e desejou, mas nunca teve a coragem de fazer. É, portanto, uma questão de inveja.

Ao contrário do filho mais novo que chama ao Pai, pai, o filho mais velho ao dirigir-se ao Pai não o trata como tal. E também não trata o irmão como irmão referindo-se a ele como “esse filho teu”. Quando Deus não é Pai os outros não são irmãos, mas sim inimigos ou rivais. Ante os quais sentimos inveja, ressentimento e ódio. Muito se fala do amor ao próximo como sendo o mais importante e a prova de que amamos a Deus; mas é só quando amamos a Deus que o nosso próximo é verdadeiramente próximo e não um estranho.

Uma catequista depois de ter contado a parábola do filho pródigo às crianças pediu-lhes que a contassem por palavras suas. Uma criança recontou parábola tal qual até ao momento em que o filho pródigo aparece no horizonte. Depois disse que quando pai viu o filho agarrou num cacete e pôs-se a correr ao encontro do filho.

No caminho encontrou o filho mais velho que lhe perguntou para onde ia, o pai disse-lhe que ia ao encontro do seu irmão, este ao ouvir que o seu irmão estava de volta agarrou também noutro cacete e foram ambos ao encontro do desgraçado que deixaram meio morto. Depois de terem ambos descarregado toda a raiva acumulada, disseram entre si façamos festa comamos e bebamos à saúde deste tratante.

Desta forma expressou, aquela criança, o que naturalmente qualquer pai do mundo faria, mas Deus Pai não é assim; porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor (Isaías 55. 8).
Pe. Jorge Amaro, IMC