15 de dezembro de 2015

O menino refugiado que não morreu afogado

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(...) ama o estrangeiro e dá-lhe pão e vestuário. Amarás o estrangeiro, porque foste estrangeiro na terra do Egipto. Deuteronómio 10, 18-19

A crise dos refugiados
Para avaliar de uma forma adequada a crise dos refugiados, como qualquer outro tema e evitar as visões reducionistas a que levam os preconceitos e as xenofobias, não há como enquadrar o tema num contexto espácio temporal mais amplo. Um olhar histórico de maior amplitude geográfica diz-nos que desde que a raça humana nasceu em Africa, no vale de Rift à 5 milões de anos, não parou nunca de deslocar-se.

Dali povoou todos os continentes, e foi na interacção com os diferentes habitats que foram surgindo povos com diferenças fisiológicas, culturais e linguísticas. Estas características ficaram demarcadas em três grupos humanos, não raças pois todos vimos de um tronco comum: Negróide, Caucasianos e Mongolóide.

Nem sempre desenvolvimento significa progresso humano. Os nacionalismos, e a consolidação das fronteiras entre as nações nos séculos XIX e XX, fizeram mais difícil a natural deslocação e mistura de povos, aumentando o racismo e a xenofobia. No mundo antigo os povos moviam-se com relativa facilidade, não havia fronteiras bem definidas, nem guarda das mesmas. Por isso podemos dizer que não há raças, nem raças puras, todo o povo é formado por outros povos.

Costumamos marcar diferenças entre o povo português e os outros povos e, no entanto, também nós somos um povo constituído por várias etnias, por outros povos: Iberos, Celtas, Gregos, Fenícios, Cartagineses, Romanos, Judeus, Alanos, Suevos, Vândalos, Visigodos e Mouros.

Situação na Síria
Governada desde os anos sessenta pela família Al-Assad, a Síria pertence ao conjunto de países muçulmanos que têm resistido ao governo da Sharia. O atual presidente Bashar Al-Assad nem foi derrubado pela América, como Saldam Hussein, nem pela primavera Árabe e pela América como Kadhafi.

Porém ao abusar da força contra a Primavera Árabe, para se manter no poder, criou uma guerra civil complexa entre diferentes etnias e grupos religiosos que lutam, não já só contra o ditador, mas também entre si, em coligações que mudam todos os dias. Aproveitando-se desta confusão surge o Estado Islâmico, em zonas não controladas do Iraque e da Síria. Desta feita, os Sírios viram-se acurralados entre o regime, grupos rebeldes e o extremismo religioso do Estado Islâmico.

Não é difícil entender por que fogem do seu país. O regime de Bashar al-Assad mata impiedosamente civis, com armas químicas e bombas de tambor; O autodenominado Estado Islâmico comete todo tipo de atrocidades como sabemos, assassina todos os que não estejam com eles, tortura, crucifica, viola e submete mulheres e meninas à escravidão sexual; outros grupos como Jabhat al-Nusra fazem outro tanto. 

Os Sírios fogem de um lado para o outro dentro do seu próprio país; de facto, actualmente um terço da população da Síria é refugiada no seu próprio pais; outros 4 milhões deixaram o país, destes 95% vivem em países vizinhos como o Líbano, a Turquia, a Jordânia. Os estados mais ricos do Golfo persa não aceitaram nenhum refugiado, Arabia Saudita, Qatar, Emiratos Árabes, Baharain, Kuwait, Irão.

O mundo não estava preparado para uma crise de refugiados nesta escala, por isso muitos dos campos não tem suficientes recursos pelo que estas populações estão sujeitas à fome, ao frio e à doença. Perdendo a esperança alguns decidiram buscar asilo na Europa, depois de uma viagem por terra e por mar explorados por traficantes, chegam às costas de uma Europa que lhes vira as costas e que ergue muros para que não entrem. Há meses que debatem como reparti-los entre si e ainda não chegaram a um acordo.

Teorias da conspiração preconceitos, clichés, xenofobias e islamofobia
Circulam nas redes sociais opiniões para todos os gostos; pelo geral negativas, cheias de preconceitos clichés e racismo. Na sua grande maioria estas opiniões nada dizem sobre o tema; fazem mais luz sobre a personalidade de quem as cria e sustenta que do tema dos refugiados. Recolhi algumas delas para as expor.

Os países árabes que os ajudem – É certo que os países árabes mais ricos os do golf pérsico não os ajudaram, mas como acima ficou dito a esmagadora maioria dos refugiados vivem nos países árabes vizinhos da Síria.

Por outro lado, o médio oriente não é uma zona estável onde todos querem ir morar; se são xiitas temem os sunitas ou vice-versa, se são cristãos temem os dois, se são ateus os três. O facto de alguns não ajudarem devia a motivar mais a nossa ajuda.

 "Primeiro estão os nossos sem-abrigo!!!" os sem emprego, combater a pobreza infantil etc…  - Pobres sempre os tereis convosco, diz Jesus, desigualdades e problemas sempre os haverá, se esperamos solucionar primeiro estes, para depois nos dedicarmos aos outros, nada faremos nem por uns nem por outros. “Primeiro o pão que está no forno”, este é um problema urgente que requer uma solução já; há homens, mulheres e crianças extenuados depois de uma longa viagem a viver em campos, em condições infra-humanas, que não vão resistir este inverno.

"Se são refugiados, porque é que a maioria são homens?!" – Há mulheres e crianças, famílias inteiras entre os refugiados, mas é fácil de entender o facto de serem, muitos deles, homens. Na nossa imigração também iam primeiro os homens. Os homens vão em busca de um local melhor e de condições, para depois poderem trazer a família, sem a ter de a sujeitar a uma viagem que poderá ter como destino a morte.

“Os refugiados são um cavalo de Tróia do Estado Islâmico!" – A actual crise de refugiados é uma consequência directa da guerra civil na Síria. O que normalmente se entende por islamização da Europa, é um fenómeno que há muito acontece e em grande medida é mais um mito islamofobico, ou uma teoria da conspiração, que outra coisa.

Mesmo que a EU aceitasse os 4 milhões de refugiados, e todos eles fossem muçulmanos, a totalidade dos muçulmanos só aumentaria em 1%, passaria dos atuais 4% para 5%. Diz ainda a teoria da conspiração que os muçulmanos crescem mais que os cristãos; o caso é que uma vez aqui a taxa de crescimento é igual à dos outros europeus. Na Síria a população estava a decrescer antes da guerra civil.

Também dizem que aumenta a criminalidade. A experiência diz-nos que ao obter um emprego começam a descontar para o sistema e a Europa de facto precisa deles. Acetando-os, e integrando-os na nossa sociedade, temos mais a ganhar que perder.

Ante a dita, “potencial” Islamização da Europa, a Chanceler da Alemanha Ângela Merkel opina que, a melhor resposta não é fechar as portas, ou combater os que já entraram, mas sim voltar à Igreja, ter a coragem de ser cristãos, fomentar o diálogo, e aprofundar de novo a Bíblia. Isto nos diz a incontestável líder da Comunidade Europeia, filha de um pastor protestante, nomeada prémio Nobel da Paz 2015 pela sua resposta adequada à crise dos refugiados, apesar de, por isso mesmo, ter perdido popularidade no seu próprio país.

O menino refugiado que não morreu afogado foi, como todos sabemos, o menino Jesus. Para evitar a ira de Herodes, que queria matar o menino, a Sagrada Família fugiu para o Egipto. Afortunadamente o Egipto daquele tempo não era como a Europa de hoje, e o menino Jesus pôde crescer “em sabedoria e em graça” no Egipto até à morte do ditador.

Dejá vue
Quando a Alemanha se quis desfazer de 5 milhões de Judeus houve várias soluções, em cima da mesa, para o problema, antes da solução final que todos conhecemos. Uma dessas soluções era colocar os judeus em comboios para Espanha e dali em barcos para a América. As nações americanas recusaram-se a recebê-los e do Canadá veio a resposta, nenhum são demasiados.

Alguém pode achar um exagero estas comparações ou só o facto de ter mencionado este episódio da segunda guerra mundial. Mas as noticias dizem que esta é a principal crise de refugiados depois da segunda guerra mundial e não há muito, numa manifestação contra os refugiados no leste da Europa, uma das frases em cartaz lamentava os campos de concentração não estarem abertos.

Travar com as rodas ou travar com o motor
Quando nas auto-estradas encontramos descidas de mais de 6% é aconselhável travar com o motor e não com as rodas. Ao travar com o motor, reduzimos a velocidade na sua origem vencendo a inércia e a força da gravidade, de uma forma eficiente e segura; ao contrário, quando não atuamos na origem do movimento, mas na sua manifestação nas rodas, desestabilizamos o carro podendo causar um acidente, porque uma roda pode travar mais que a outra e porque nada fazemos quanto à inércia e força de gravidade, que continuam a empurrar o carro para a frente.

Travar com as rodas - É certo que temos que travar o movimento dos refugidos, mas devemos travá-lo na sua origem, não quando já estão às nossas portas. Quando a União Europeia tinha uma acordo com a Líbia de Kadhafi para impedir que os refugiados cruzassem o mediterrâneo, estava a travar com as rodas. A Inglaterra quer que eles fiquem em França, os Franceses querem que fiquem em Itália, os Italianos que fiquem na Grécia e os Gregos, como o resto dos europeus, querem que fiquem na Turquia. O mesmo se está agora a fazer, com o acordo com a Turquia, para impedir que passem para a europa; ou o que fazem alguns países que os deixam passar para que o problema o tenha o próximo país. Enquanto isto acontece alguns países, do leste europeu, estão já a construir muralhas nas suas fronteiras.

Travar com o motor – Seria procurar resolver o conflito na Síria, coisa que se apresenta difícil; os Sírios sozinhos já provaram, ao longo de 4 anos, que não conseguem; as potências mundiais são tão facciosas como as facções ao interior da Síria. A última conferência de paz, celebrada em Viena, revelou que o mundo em relação à Síria também está dividido numa espécie “fria guerra civil”; temo que enquanto esta não acabar, ou seja, enquanto os Estados Unidos, a Rússia e o Irão não se puserem de acordo, não acabarão as hostilidades na Síria e o fluxo de refugiados.

O menino refugiado que não morreu afogado
Já passaram alguns meses desde que o corpo de um menino refugiado deu à costa desencadeando um onda de solidariedade. Recordemos neste Natal que o menino Jesus, fugindo da ira de Herodes que o queria matar, também teve que buscar refúgio noutro país. Como foi para o bem da humanidade que a fuga da Sagrada Família teve sucesso, assim são e assim sejam todas as fugas.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de dezembro de 2015

Consagrado para a Missão

2 comentários:

Pe. Jorge em Etiópia com crianças e jovens doentes de poliomielite
Quem sou, de onde venho, a onde vou
Quero terminar esta reflexão sobre a vida consagrada com o meu próprio testemunho de sacerdote religioso consagrado para a Missão.

Sou natural de Loriga, uma vila do concelho de Seia, na Serra da Estrela. Há 30 anos que vivo ao serviço da Missão em vários países, Etiópia, Espanha, Inglaterra, Canadá, Estados Unidos e agora em Portugal.

Porque aos 6 anos de idade eu quis ser o que hoje sou, resulta-me difícil ajudar jovens adultos de 20 e mais anos no discernimento da sua vocação; e também me custa entender como tantos sacerdotes abandonam os Institutos Missionários Ad Gentes para serem padres diocesanos. Deixam de ser pescadores de homens, como Jesus queria que fossem os seus discípulos, para serem pastores de um rebanho cada vez mais diminuto.

É certo que a razão que me levou a escolher esta vida não é a mesma pela qual me mantenho nela. A minha vocação surgiu num dia em que um missionário visitou a minha escola e falou das suas aventuras em Africa com tanto entusiasmo que logo despertou, no meu coração de criança, a ânsia de vir um dia a ser aventureiro como ele. Mais tarde, é claro, descobri que o gosto pela aventura foi somente a isca que Deus usou para pescar, para Ele, o meu coração de menino. Fui pescado por Deus como um peixe para mais tarde me transformar, tal como os apóstolos, em pescador de homens.

Os sonhos de criança são incontornáveis; de tal forma estava eu irremovível desta minha resolução que cheguei a bater o pé ao meu pároco, que me queria mandar para o seminário diocesano. Não era o sacerdócio o que mais me atraia na altura, nem agora, mas sim a vida missionária. Depois de fracassadas tentativas de entrar nos Missionários do Verbo Divino em Tortosendo e nos Combonianos de Viseu, entrei para os Missionários da Consolata, em Vila Nova de Poiares, por sugestão do meu mesmo pároco que ante a minha insistência deu o braço a torcer.

“Deixar a vida pelo mundo em pedaços repartida”
Dentro da mesma Igreja existe uma igreja orante e uma militante, seguindo estas linhas, a Vida Consagrada na Igreja divide-se em duas grandes vertentes activa e contemplativa. Variando os carismas a vida contemplativa baseada fundamentalmente na regra de São Bento, “Ora et Labora” é uma vida completamente dedicada à oração e contemplação do mistério de Deus.

Hoje esta maneira de viver é muito contestada pelo frenesi dos tempos modernos, nos quais a vida humana parece justificar-se pelas obras, por aquilo que uma pessoa faz. Ante este cenário activista, a vida contemplativa vem nos recordar que mais importante é o ser que o ter e o fazer. Por mais anos que vivamos neste mundo, a fazer coisas, mais serão os anos em que viveremos contemplando a Deus no seu reino; e se assim é porque não começar já agora?

Dentro da vida activa os religiosos dedicam-se segundo o seu carisma a mil e uma actividades no campo da educação, da saúde física e mental, da promoção humana etc. O meu carisma, digo com orgulho citando o meu fundador o Beato José Allamano, é a vocação mais perfeita da Igreja, a Missão; é de facto a razão mesma pela qual e para a qual a Igreja existe: levar o evangelho a toda a criatura; levar Cristo a todos os povos e ou trazer todos os povos ao Seu conhecimento.

Há quem viva toda a sua vida no mesmo lugar, convivendo com as mesmas pessoas, fazendo sempre a mesma coisa. Há em Portugal párocos, que estão ao serviço da mesma comunidade há mais de 50 anos. Quanto a mim, cedo me dei conta de que a minha vida não seria vivida desta maneira. De facto desde os 10 anos, quando entrei para o Instituto, nunca estive mais de 3 ou 4 anos no mesmo sítio.

Vejo a minha vida com um puzzle de peças dispersas em sítios tão longe como dispares; com pessoas de varias etnias, línguas, povos e nações; quando esta chegar ao fim e todas as peças estiveram reunidas e colocadas no seu lugar, espero que, no seu conjunto, formem uma imagem que agrade a Deus. O missionário é uma pessoa sem eira nem beira, um peregrino sempre em caminho a quem o entardecer não o encontra onde o deixou o amanhecer, como diz Kalil Gibran no seu livro o Profeta.

Ser consagrado significa ser posto de parte, reservado para um serviço extraordinário que requer, da parte do candidato, colocar de lado o que configura e dá forma à vida da maior parte das pessoas. Os votos de pobreza, castidade e obediência são comuns a todos os consagrados; o consagrado, não possui bens materiais para dedicar-se exclusivamente ao cultivo de bens espirituais; ama universalmente com um amor que não exclui ninguém, pelo que o seu abraço é aberto; não busca poder, nem poleiro, nem fama nem nome; submete-se ao plano que Deus tem para ele, obedecendo-lhe através dos superiores e dos sinais dos tempos.

O consagrado para a missão, ecoa ainda hoje no seu interior aquelas palavras do mestre “ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda a criatura". Como as torres de TV o missionário aumenta o sinal, neste caso, o sinal da fé que vai passando de geração em geração, de povo em povo, de terra em terra.

Missionário, ontem, hoje e amanhã
Se soubesse aos 6 anos o que hoje sei, passados 30 anos da minha ordenação, voltaria a escolher a vida missionaria. Vejo-me de tal forma identificado com ela que aquela intuição que eu tive aos 6 anos, e a opção que fiz aos 10, não pode ter sido só humana; foi um autêntico chamamento de Deus. Nunca me senti galinha de capoeira mas águia, que voa bem alto sem limites de fronteiras, línguas, sem preconceitos contra outros povos e sem apego desmesurado e paralisante pela minha família, a minha terra, o meu pais e a minha cultura.

Recordo um dia, estando eu de férias e em vésperas de voltar para a Etiópia, o meu pai estava a tentar convencer-me que não devia regressar, que os anos que tinha estado na Etiópia eram suficientes que aqui também fazia missão etc etc. A minha mãe ouviu-o e disse-lhe em tom severo: “Cala-te homem que Deus pode-te castigar”, e o meu pai logo se calou. Deus, que já tem a minha mãe consigo, deve estar muito contente com ela pois não foi uma mãe galinha; foi uma mãe que soube superar o instinto materno, coisa que muitos pais de hoje não conseguem.

Quantas vocações se têm perdido para a vida religiosa e para o sacerdócio por causa de pais que se agarram aos seus filhos, privando-os da “liberdade dos filhos de Deus” e muitos destes pais até são católicos e praticantes; eu sempre me perguntei com que cara, vão aparecer diante de Deus, quando tudo fizeram para destruir a vocação à vida consagrada dos seus filhos e filhas.

A missão está no seu começo
Nunca ficarei no desemprego; foi o papa João Paulo II que o disse, a missão está no seu começo. O maior dos continentes está ainda sob-evangelizado pelo que trabalho não faltará. Por outro lado muitos dos países, que outrora eram cristãos, abandonaram a fé e vivem numa espécie de paganismo moderno adorando a vários deuses: já não baptizam os seus filhos, nem os mandam à catequese, pelo que um eventual contacto com o evangelho pode ser considerado tão primeira evangelização como aquela pessoa, que na distante Mongólia, onde praticamente não há cristãos, ouve falar de Cristo pela primeira vez.
Pe. Jorge Amaro, IMC