15 de setembro de 2015

A Verdade vos fará livres

1 comentário:
Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está no Céu. Mateus 5, 16

Depois de expor, em artigos anteriores, os votos de pobreza e castidade, completo o tripé sobre o qual assenta a vida religiosa reflectindo sobre o voto de obediência. O religioso está chamado a ser um farol, a guiar os seus semelhantes para o Céu vivendo, no aqui e agora, a mesma vida que se viverá no céu eternamente; está chamado a encarnar os valores do Reino e a guiar a humanidade nas relações: riqueza-desprendimento com a sua vivência do volto de pobreza; amor-sexo com a sua vivência do voto de castidade; e poder-liberdade-fidelidade com o voto de obediência.

Conhecer a verdade
Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres. João 8 31-32

Administradores, não proprietários – Na Igreja é-nos dito que a vida não é nossa, que é um dom de Deus; nós não fizemos nada para a ter, nem fomos consultados se queríamos ou não viver. Na sua totalidade a vida é de facto um dom. Mas por quanto respeita à primeira parte desta vida, o tempo em que vivemos na terra, ela mais que dom é empréstimo. No livro do Genesis diz que Deus fez um boneco de barro e que lhe soprou nas narinas e que aquele começou a viver. Mas da mesma forma que sopra, retira esse sopro divino quando morremos.

Que a vida é um empréstimo está claro na parábola dos talentos. Todo o empréstimo deve render juros; a nossa vida tem que dar lucro; tem que ser produtiva; pode não ser reprodutiva, mas tem de ser produtiva. Temos de deixar neste mundo mais do que o que cá encontramos; temos de fazer a diferença, ser parte da solução e não parte do problema; que a nossa vida seja um contributo para a solução, para um mundo melhor, e não um contributo para a o problema, ou seja um mundo pior do que era antes de cá chegarmos. Como sugere a parábola dos talentos, temos de fazer algo com a nossa vida, não a podemos entregar tal qual a recebemos.

Todo o bom administrador tem os “livros” em dia pois não sabe nem o dia nem a hora em que, o patrão ou um fiscal do governo, pode vir inspeccionar as suas contas. Por isso devemos de fazer relatórios periódicos da nossa administração. Para isso a Igreja tem um sacramento, o sacramento da penitência; os que recorrem a este sacramento, prestam periodicamente contas das entradas e das saídas, e assim sabem se estão a crescer economicamente ou se estão a caminhar para a banca rota. É também um exercício de autocrítica, imprescindível para o crescimento como pessoa a todos os níveis.

Construtores, não arquitectos - Toda a pessoa que vem a este mundo vem com um projecto. Vem porque Deus assim o quis. As circunstâncias do seu nascimento não interessam: nem retiram nem acrescentam dignidade. Tão filho de Deus é o nascido por amor como o nascido por acidente, o nascido de prostituta, o nascido de uma noite de prazer e até o nascido de uma violação; toda a vida humana que vem a este mundo, desde a sua concepção até à morte natural, é viável e portanto inviolável.

Deus escreve direito por linhas tortas. Para os seus desígnios serve-se tanto do nossos bem como do nosso mal. Para Ele não há filhos ilegítimos nem de sangue azul; para todos é Pai; todos, iguais em dignidade, são herdeiros da vida eterna.

Assim como não se constrói nenhuma casa, nas nossas cidades e aldeias, antes de ser devidamente desenhada e projectada, nenhuma vida vem a este mundo sem que Deus tenha traçado para ela um projecto; sem que Ele tenha desenhado um plano.

Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi a vós e vos destinei a ir e a dar fruto, e fruto que permaneça Jo 15, 16 - Não somos portanto nós que desenhamos o nosso destino; estamos chamados a ser uma casa construída sobre a rocha, se ouvirmos a palavra, ou seja, se conhecermos o plano que diz respeito à nossa vida e o pusermos em prática, se o executarmos tal e qual ele está desenhado.

Como não somos proprietários da nossa vida também não somos os seus arquitectos, mas sim os seus pedreiros ou mestre-de-obras. O arquitecto de tudo e de todos, o criador é Deus; o desenho, o projecto, ou plano da nossa vida está com ele, para o conhecermos temos de o consultar periodicamente, à medida que vamos construindo a nossa vida, a nossa casa.

O construtor que não consulta o arquitecto periodicamente corre o risco de construir algo que não está de acordo com o projecto. Como é embaraçoso sempre que isto acontece nas nossas cidades, casas às quais não é dada a autorização para serem habitadas, chegando mesmo a ser destruídas, porque não foram edificadas em conformidade com o desenho: Pior embaraço é apresentar-se diante de Deus com uma vida vivida contra a sua vontade.

A consulta periódica, contínua e constante que o construtor deve fazer ao arquitecto chama-se oração. Jesus passava noites inteiras em oração para saber qual era a vontade de Deus a seu respeito. Outro tanto devemos fazer nós, pois é a sua vontade e não a nossa que devemos actuar. É Ele que nos chama, que nos dá a vocação e os talentos suficientes para que a nossa vida seja viável; numa profissão ou numa missão.

Como o construtor só pede as instruções para o alicerce, se está nos alicerces, e não para o telhado, pois ainda não chegou o tempo de o construir, a oração deve ser um processo contínuo e constante que acompanha a construção a par e passo. A visão da totalidade e do conjunto, o desenho assim como a maqueta do plano, só Deus a tem e só no fim a veremos e seremos confrontados com ela e por ela. Quem nunca reza, nunca sabe qual é o plano de Deus a seu respeito.

O verdadeiro discípulo de Cristo é um obediente, pois já o mestre era obediente ao Pai. Quem me ama cumpre os meus mandamentos; o discípulo é o que que ouve a palavra e a põe em prática. Permanecer fiéis à mensagem do mestre, significa portanto obedecer aos ditames dessa mensagem. 

A verdade leva à liberdade, a liberdade leva à verdade
Dominar-se a si mesmo é o maior dos impérios…
Como pode alguém dizer-se livre se é governado pelos próprios prazeres? Sócrates
Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Jo 14, 6
Antes de nos podermos submeter a um projecto traçado por Deus e ser um contributo real para o mundo; antes de nos podermos entregar, de alma e de coração, a esse projecto pelo qual nos doamos a nós mesmos ao serviço de uma causa, temos de nos possuir: ninguém dá o que não tem, se não nos possuímos não nos podemos doar.

Para nos podermos possuir temos de submeter dentro de nós forças antagónicas, que não obedecem à nossa razão; temos de chegar a ser senhores de nós mesmos, vencendo a guerra civil que todo homem tem dentro de si.

Ao repreendermos um adolescente é frequente ouvirmos: “eu posso fazer o que quero com a minha vida”; muitas vezes os que assim dizem são, precisamente, os que menos poder têm para fazer com a própria vida o que querem. Não existe liberdade para… sem liberdade de… Não somos livres para fazer o que quer que seja se não nos possuímos interiormente; se não estamos livres de vícios, maus hábitos, manias e todo tipo de comportamentos repetitivos, obsessivos e excêntricos, que mais que a nossa inteligência, governam a nossa vida do dia-a-dia e a cada momento decidem o que fazer.

Um homem pode deixar que um mau hábito se assenhoreie dele, de tal forma que não consiga libertar-se. Pode deixar-se amarrar e dominar por um prazer, de tal forma que não tenha força para se soltar. Completamente escravizado pela auto-indulgência, uma pessoa pode chegar à esquizofrenia de, ao mesmo tempo, amar e odiar os seus maus hábitos. O que foi apanhado na rede, na teia do vício perdeu por completo o poder para fazer o que quer. Como diz Jesus ninguém que peca pode dizer que é livre.

A liberdade é para a alma o que o pão é para o corpo. Mas se a liberdade é um valor humano, como todos os outros valores, não é algo com o qual nascemos mas sim algo que vamos conquistando com esforço, sangue, suor e lágrimas.

Uma vida em Presente Prefeito
Assim, o que realizo, não o entendo; pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio (…) Ora, se o que eu não quero é que faço, então já não sou eu que o realizo, mas o pecado que habita em mim. (…) Quero fazer o bem, mas é o mal que eu não quero, que acabo por fazer. Rom. 7:15-21

Para nos podermos possuir temos de nos conhecer. Em termos de gramática é uma ilusão pensar que a nossa vida decorre no Presente simples, quando 90% do nosso comportamento é influenciado pelo nosso passado. Na realidade, o tempo do verbo em que vivemos é o Presente Prefeito (que não existe em português e que se refere a uma acção que começou no passado e continua no presente).

Vivemos num presente que é frequentemente invadido pelos assuntos não resolvidos do nosso passado. Um passado do qual não somos conscientes, mas que continua a reproduzir-se no nosso presente quando, alheio à nossa vontade, alguma circunstância ou evento o acciona. Desta forma temos a impressão de que caminhamos por um terreno minado e que sem querer podemos accionar uma bomba, ou que funcionamos e nos comportamos em piloto automático.

Conhece-te a ti mesmo – A máxima socrática soa aqui em toda a sua exuberância. Só posso aspirar a ser livre, a possuir-me a mim mesmo para me poder doar se me conhecer. O que conheço de mim mesmo posso controlar, pois todo o conhecimento implica controlo; o que não conheço de mim mesmo controla-me, e alheio à minha vontade, faz-me viver preso a um piloto automático.

A nossa verdade, a nossa identidade, tem uma dimensão histórica, é algo que tem vindo a ser construído. Por isso, tal como as árvores que precisam de crescer para baixo, a fim de poderem crescer para cima, também nós, para podermos crescer como pessoas, temos de visitar o nosso passado.

Como a árvore estende as suas raízes em profundidade para encontrar alimento, assim nós devemos estender o nosso conhecimento, até ao princípio da nossa vida, a fim de compreender totalmente como chegamos a ser o que somos, e assim estar capacitados para nos tornarmos no que Deus nos chama a ser.

Depois de nos apropriamos do nosso passado, e sermos conscientes de tudo o que de bom e de mau fizemos ou nos aconteceu, devemos fugir à tentação de negar, o que quer que seja, e assumir e fazer-se responsáveis da nossa história.

…Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres. Porque conhecemos a verdade do nosso passado, e dele nos fazemos responsáveis, temos agora poder para controlar a sua influência no nosso presente. Desta feita, já não andamos sobre um terreno minado, nem somos conduzidos na vida por um piloto automático; somos livres porque o nosso comportamento é directamente decidido pela nossa razão. Assim podemos agora dispor do nosso tempo e energias e comprometê-los numa causa da nossa escolha.
Pe. Jorge Amaro, IMC