15 de setembro de 2014

Só não perdi o que dei

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O facto
Com vista a criar espaço, no meu disco exterior, para as inúmeras fotos e vídeos que tirei recentemente na Etiópia apaguei a cópia de segurança, de tudo o que tinha no computador, pensando que seria só provisoriamente. Infelizmente, depois de dias de uso do programa Photoshop, para o tratamento das fotografias, o computador avariou; ante a avaria, para não perder nenhuma informação, quis copiar, outra vez, todos os documentos do computador para o disco exterior mas já não fui a tempo, pois o que estava danificado era precisamente o disco duro do computador. 

O significado
Catástrofe… perdi tudo… perdi largos e longos anos de trabalho; como me foi acontecer isto a mim, que uso computador desde que este se começou a vulgarizar e que tinha sido sempre tão cuidadoso em guardar uma copia de segurança e às vezes até duas… Estou perdido, pensei… isto é como morrer, ou pior, como ter Alzheimer, perder a memoria; muito do material que tenho no computador preciso dele aqui e agora e no futuro.

Digital e espiritual
Foi em 1989,quando cheguei à Etiópia, que conheci o meu amigo americano, Pe. George Cotter de feliz memoria, recentemente falecido. Ele fazia um trabalho de investigação na área da antropologia cultural e recolhia provérbios etíopes. A coleção destes provérbios estava contida num pequeno computador portátil, de ecrã monocolor verde, com menos de um megabite de memória ram e 20 megabytes de disco duro.

Para evitar andar com baús cheios de livros, como muitos missionários fazem, deixei todos os livros em Portugal, e apenas levei para a Etiópia um arquivo/ficheiro com milhares de fichas, era a forma, na época, de guardar informação de forma ordenada. Ao ver aquela maquineta, de George, pensei que seria a solução para o meu problema.Como missionário, já tinha viajado muito, nunca tinha estado mais de 3 ou 4 anos no mesmo sítio, desde a idade dos 10 anos, e ainda teria muito que viajar o computador permitia-me andar com a casa às costas como o caracol; bem mais leve que carregar livros.

Foi então que começou a surgir em mim a filosofia do digital. Como hoje estou aqui, amanhã estou além, só posso levar comigo o essencial; e tudo o que para mim tem valor é digitalizável. Se pensarmos bem, o digital é sinónimo de espiritual; tanto um como o outro são realidades imateriais e intangíveis que precisam de um, cada vez mais pequeno, substrato material para existirem e subsistirem. Hoje, se imprimíssemos a informação contida num pequeno disco externo, enchíamos uma casa de livros, de discos de música, de albuns de fotografias e de grandes rodas de filmes de película. Não sei se seria possível “imprimir”, ou de alguma forma materializar, a mente e o espírito contidos no nosso cérebro…

A magnitude da perda
Tudo o que possuo atualmente é digital e está no meu computador: o meu diário; os livros que preciso e me são caros digitalizei-os e coloquei-os lá, foi um trabalho faraónico de muitos anos; os meus sermões; artigos já publicados e por publicar; só em documentos de puro texto tenho 8 gigas, mais de 3000 documentos, tudo muito bem organizado por temas e pastas; PowerPoints que fiz sobre inúmeros temas; palestras; encontros formativos; retiros;as minhas músicas preferidas, algumas adquiridas já em digital, outras digitalizei-as eu; as fotografias dos lugares onde estive e das atividades ali desenvolvidas: Espanha, Etiópia, Canada, Inglaterra, Estados Unidos e Portugal, que levei semanas a digitalizar dos antigos slides ou negativos; todas elas são mais de 12.000 devidamente catalogadas por tema lugar e ano;e por fim cerca de 100 filmes de mensagem, muitos dos quais comprei em CD e passei para a drive por comodidade. Um total de 120 gigas, que num momento se esfumaram em nada…

“Só não perdi o que dei”
Depois de duas noites, de mal dormir e maus sonhos, comecei a pensar que alguns documentos estariam no email; outros teria dado a amigos e pessoas que me pediram. Veio-me à memória, especificamente, uma pasta intitulada diaporamas, onde eu tinha colocado o trabalho de um verão. Digitalizei os antigos diaporamas, feitos de slides sincronizados com uma banda sonora em cassete. Fabulosos diaporamas com muitas histórias e mensagens que ninguém se tinha lembrado de transformar em powerpoints. Eu digitalizei o som e a imagem e manualmente sincronizei os dois; foi um trabalho que durou um verão inteiro e resultou numa pasta de uns 15 diaporamas. Como notei que seria material valioso dei depois a um catequista,assim como muitos livros no âmbito da psicologia e espiritualidade.

Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por minha causa, há-de encontrá-la (Mateus 16, 25). Eis aqui a prova de como o digital e o espiritual se parecem e de que o evangelho é a verdade e o caminho a seguir, em todas as realidades e situações da vida humana.

Tudo o que eu dei, do meu trabalho digital, não ficou perdido; tudo o que retive só para mim, perdeu-se. Se é verdade que só damos o que temos, também é verdade que só temos o que damos. Recordemos aqui a parábola dos talentos: aquele que não “deu”, que não fez render o seu talento perdeu-o; os que os “deram”, ou seja puseram em risco de perder os seus talentos negociando com eles, esses ganharam.

Se durante alguns anos, um futebolista, um cantor, ou um pintor deixarem de praticar a sua arte, ou seja de a “dar”, de a pôr ao serviço da comunidade, ao fim de um tempo perdem talento em relação a essa mesma arte e ofício: Porque não deram, perderam…

Um final feliz…
Pensava em recorrer àqueles a quem dei, para recuperar algo do perdido, quando o técnico informático me liga para me informar que, depois de três dias a trabalhar sobre o disco danificado, conseguiu recuperar tudo menos três vídeos da Etiópia feitos recentemente. Deo Gracias…
P. Jorge Amaro, IMC