15 de abril de 2024

A Cosmovisão Pré-Histórica

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É comummente aceite pela antropologia e arqueologia que o ser humano atual é Homo Sapiens que descende de outras espécies de primatas já extintas. De há 4 a 6 milhões de anos, existiram outros hominídeos, ainda pertencentes ao reino animal: o Ardipithecus Ramidus na Etiópia; depois deste, veio o Australopitecus Afarensis, nome técnico da Lucy, que também habitou a Etiópia na região chamada Afar.

Sucederam-se o Homo Habilis e o Homo Erectus que habitaram o Leste da África. Deste descende o Homo Heidelbergensis que é o antepassado comum dos completamente humanos Neanderthal e Homo Sapiens. Temos antepassados comuns com os chimpanzés, macacos e gorilas. No entanto, evoluímos até ao que hoje somos, enquanto o mesmo não aconteceu com eles. Porquê?

A ciência nunca chegará a descobrir, porque o ser humano foi a única espécie de ser vivo que evoluiu. Nunca vai descobrir porque a resposta está em Deus que pensou em nós como expoente máximo da evolução das espécies, desde que a vida surgiu no Oceano em forma de um organismo unicelular chamado Arqueia.

Cosmovisão e autoconsciência
Sabemos que o Homo Sapiens adquiriu a mesma estrutura anatómica que hoje temos há 130 000 anos. Mas quando começou este a ser autenticamente humano, ou seja, a ter consciência de si mesmo? A maior parte dos paleontólogos pensa que isto começou a acontecer há cerca de 40 000 anos quando se deu o ponto de viragem na criatividade humana, quando o Homo Sapiens deixou África e chegou à Europa, desenvolvendo as ferramentas, primeiro de pedra, depois de metal, para agir sobre a realidade à sua volta. Num processo de conhecer e dominar a natureza à sua volta, o Homem foi-se conhecendo a si mesmo como diferente da realidade que o rodeava.

Para além das ferramentas, o pensamento abstrato e simbólico, próprio do homem moderno, pode ver-se também na decoração das paredes das suas cavernas com pinturas rupestres, que nos contam um pouco das suas vidas e mentes em esplêndidas pinturas de veados, cavalos e touros selvagens, assim como dos seus rituais funerários. O mesmo expressam os objetos de ornamentação corporais que usavam e as estatuetas modeladas em barro, exaltando a feminidade e fertilidade da mulher.

Tanto na Idade da Pedra (Paleolítico, Mesolítico, Neolítico) como na idade dos Metais (Calcolítico ou Cobre – Bronze – Ferro), o Homem não tinha ainda uma cosmovisão definida, pois para ter uma cosmovisão ou uma visão do cosmos ou mundo que o rodeava, era preciso, de alguma forma, ter a capacidade de se abstrair de si próprio. O homem pré-histórico ainda se encontrava, como todos os animais, vivendo maioritariamente em simbiose com a natureza. Dado que não se via como separado dela, não podia ter uma ideia dela.

Como o bebé que ao nascer corta o cordão umbilical com a natureza, assim o homem primitivo experimentou uma rutura através do processo de ganhar gradualmente consciência de si mesmo. Ao ganhar autoconsciência, o ser humano ainda se via na natureza, mas em oposição a esta que já não era tanto uma pródiga Mãe, mas mais madrasta, pois agora tinha de lhe arrancar o sustento, como o bebé tem de chorar se quiser mamar.

Cosmovisão e ciência
O Homem procurou emancipar-se, libertar-se das amarras e tutela da Natureza, ganhando independência e autonomia em relação a esta. Ainda hoje são estes os valores sobre os quais se fundamenta a vida do ser humano como ser individual. Nesta luta pela liberdade, criou instrumentos cada vez mais potentes para modificar a natureza e adaptá-la às suas necessidades. Com a descoberta do fogo pode combinar diferentes elementos criando outros novos.

Substituiu a caça pela domesticação dos animais, de modo a ter carne quando quisesse e não quando a Natureza permitia; substituiu a recoleção de frutos pela agricultura, para poder armazenar comida quando esta escasseava e poder ter tempo para outras coisas como inventar, descobrir, criar.

A cosmovisão como visão ou conceptualização do mundo à nossa volta, como mentalidade ou padrão em relação ao qual medimos e julgamos todas as coisas, vê-se afetada e confrontada por cada descoberta científica. Cada nova conclusão científica obriga a nossa mente a conceptualizar a realidade de outra forma, a olhar para o mundo de outra maneira. Por outras palavras, opera na nossa mente uma autêntica metanoia, ou seja, mudança de paradigma mental.

A descoberta do fogo
Esta descoberta modificou de tal maneira a vida das pessoas que o fogo passou a ser entendido mitologicamente como tendo sido roubado aos deuses. O fogo era para os nossos antepassados como a lâmpada de Aladino que, através de fricção, apareceria como que por magia, fazendo os homens com ele o que quisessem.

O fogo teve uma importância grande para a coesão de famílias e comunidades, pois todos se reuniam à volta da fogueira para se aquecerem. Como ninguém queria ficar de fora, ao frio, o fogo atuava como fator dissuasor de atitudes antissociais.

Permitiu estender a luz do dia pela noite adentro e, como de noite não se podia trabalhar, as duas ou três horas extra de luz ténue serviam para manifestações culturais, para o partilhar de experiências e para a transmissão da cultura de pais para filhos. A luz à noite aumentou a segurança dos seres humanos em relação aos animais que caçavam de noite, uma vez que servia para os afugentar.

No entanto, a utilização mais importante do fogo, nesta altura, foi a preparação dos alimentos. O alimento cozido ou assado melhorou a dieta do ser humano. Certos alimentos são mais nutritivos cozidos que crus. Ao fogo e ao cozinhar dos alimentos se deve o aumento populacional e a sobrevivência dos seres humanos. Por fim, foi precisamente o fogo que permitiu aos humanos passarem da Idade da Pedra à Idade dos Metais.

Sociedade igualitária da velha Europa
Num espaço de tempo que vai do Paleolítico superior, há 50 000 anos até ao princípio do Calcolítico (Idade do Cobre), o Homo Sapiens deixou-nos não só as famosas pinturas rupestres, mas também inúmeras estatuetas femininas onde os atributos sexuais da mulher são acentuados e até exagerados.

A arqueóloga Marija Gimbutas crê que estas estatuetas são a prova da existência de uma sociedade não matriarcal, mas sim mais igualitária na velha Europa, depois de o Homo Sapiens deixar África. Nestas sociedades antigas, as mulheres e os homens viviam como iguais em praticamente todos os aspetos da vida diária. Para além disso, às mulheres era-lhes atribuído um estatuto superior devido às suas capacidades reprodutivas. Na verdade, a identidade das mulheres como dadoras de vida ficou intimamente ligada à deusa mãe que dá vida e que serviu como o ponto focal da velha religião europeia.

O papel do pai na antiguidade pré-histórica era inexistente, como o é nos animais mais próximos de nós na evolução das espécies. Isto aconteceu porque o corpo feminino, pela sua fisionomia, dava provas de maternidade, enquanto que o corpo masculino não dava provas de paternidade. No Neolítico, assim como no Paleolítico superior, a religião estava centrada no poder da mulher em gerar vida.

Podemos concluir que a primeira divindade venerada pelos seres humanos era uma deusa, não um deus. A reverência era dada à deusa Mãe de tudo quanto vive, identificada tanto como Natureza ou solo. A Terra, como planeta ou como solo, a Natureza, assim como os nomes de todos os continentes são nomes femininos.

O varão observa com fascínio como do seio da terra vem a vida das plantas que são a vida dos animais, e ao seio da terra volta essa vida quando plantas e animais morrem. Observa também que à imagem da terra também a mulher e só ela, gera vida. Dada a inteligência rudimentar do ser humano naquele tempo, a conexão entre as relações sexuais e o parto ainda não tinha sido estabelecida, isto porque a causa e o efeito estavam separados por nove meses.

Num tempo em que os humanos não teriam mais inteligência que a que tem um rato de hoje, pensemos que se um rato comer um veneno e morrer, de imediato os outros ratos nunca mais tocam nesse veneno, pois estabelecem uma conexão entre a morte do seu congénere e o pó que comeu. Porém, se o veneno for um anticoagulante pelo qual o rato não morre, mas se perder todo o sangue no caso de ter um acidente ou brigar com um congénere, a conexão entre a morte e o anticoagulante não é estabelecida, o que faz do anticoagulante o melhor veneno.

Enquanto a paternidade não foi estabelecida, as mulheres da tribo detinham um certo poder e alta estima, sendo respeitadas pelos varões, apesar de estes, como é natural, possuírem maior força física. Por outro lado, basta olhar para os seres vivos mais perto de nós na evolução das espécies, para vermos situações semelhantes.

Olhemos para os cães, como reverenciam as cadelas, sobretudo quando acabaram de parir (dadoras de vida): não se chegam a elas e, embora fisicamente sejam mais fortes, não usam de violência física contra as mesmas, mostrando até uma certa “reverência”. Em caso de conflito, a fêmea prevalece, não só porque se torna muito agressiva, tirando forças da fraqueza, mas também porque o macho se afasta em sinal de respeito e não confronta a fêmea, embora o pudesse fazer por ter mais força física.

Em todas as culturas, a divindade é geradora de vida. Por outro lado, também, no entender de Rudolf Otto, a divindade é identificada em todas as culturas como sendo um “misterium tremedum et fascinans”, o qual podemos traduzir pelo amor e temor de Deus. Quando se representa Deus como sendo mulher, imediatamente todas as mulheres são uma imagem desse Deus, pelo que serão tão respeitadas quanto Deus o é.

Nunca houve e podemos dizer que nunca haverá uma sociedade que seja puramente matriarcal, enquanto o varão tiver uma força física superior à mulher. Sociedades matrilineares ou igualitárias existiram e podem ainda existir.

Quando a conexão entre o coito e o parto foi estabelecida, o estatuto do homem começou a subir. Começou então a ser visto como crucial para o processo reprodutivo que garantia a vida. A deusa original da Terra Mãe passou a ser complementada por um consorte, primeiro pensado como o deus Pai Céu. A chuva vinda do céu era o sémen divino enviado para engravidar a Mãe Terra para que a vida pudesse surgir.

Herbert W. Richardson, no seu livro Nun, Witch and Playmate, escreve que esta compreensão maternal de Deus e da vida humana prevaleceu até ao amanhecer da autoconsciência, quando uma divisão apareceu na vida humana entre o instinto natural e o ego emergente que se atreveu a enfrentar e confrontar-se com esse instinto.

Quando isto aconteceu, deu-se uma reviravolta na cosmovisão humana, ou seja, uma nova definição de todos os aspetos da vida. Quando a vida humana é definida de uma nova forma, o Deus adorado por causa da vida humana também passa a ser definido de uma nova forma. Os antropólogos entendem que isto aconteceu por volta de 7 000 AC.

Génese da cosmovisão andro-cêntrica na Bíblia
O bispo protestante John Shelby Spong no seu livro “Viver no pecado”, descreve muito bem como a Bíblia faz eco do processo de transição da conceptualização feminina (deusa Asherah) para a conceptualização masculina da divindade (Yahweh). Este processo não aconteceu de um dia para o outro, foi um processo demorado e doloroso, com inúmeras recaídas. O primeiro livro dos Reis (18:40) dá-nos um exemplo da perseguição que os seguidores de Yahveh moveram contra os seguidores dos deuses da fertilidade, no episódio do confronto entre os profetas de Baal e Elias, o profeta de Yahveh.

No século VII antes de Cristo, ainda existiam pequenos santuários dedicados à deusa da fertilidade Asherah e ao seu consorte Baal, nos quais se realizavam liturgias explicitamente sexuais que incluíam prostituição sagrada, tanto masculina como feminina. Nem a reforma do Deuteronómio nem a de Ezra, no século V AC, conseguiram extinguir completamente estas práticas.  

Yahweh era um deus masculino, solitário, que tudo criou por intermédio da Palavra pronunciada, sem precisar de uma parceira feminina. O culto a Baal, mais antigo, partiu da observação do poder sexual da reprodução.

John Shelby Spong vê na história de Abraão um eco bíblico do momento em que o ser humano ganhou autoconsciência. Rompeu com a natureza, como Abraão rompeu com a sua terra Natal Ur, na fértil Mesopotâmia, para peregrinar pelo deserto, descobrindo-se a si mesmo. Os deuses da fertilidade exigiam sacrifícios humanos, Abraão rompeu com essa tradição, ao não sacrificar o seu filho por um impulso interior.

Com o surgir da consciência e do pensamento, a sobrevivência do ser humano passou a não depender já tanto da Natureza seguir o seu curso, mas do pensamento humano que conhece, descobre e domina a natureza.

A supressão bem-sucedida do culto da fertilidade, com a sua divindade feminina, faz parte do contexto histórico da criação do Javismo, no qual a deusa Eva, mãe de todos os seres vivos, convive com o mal e é banida para sempre do paraíso pelo deus superior masculino.

Segue-se a insistência bíblica na natureza totalmente masculina de deus e a atribuição correspondente de prerrogativas divinas (ou seja, masculinas) aos homens, que sozinhos, argumenta o mito, foram criados à imagem deste Deus.

Nasceu assim a cosmovisão andro-cêntrica da vida, o domínio do varão sobre a mulher que se estende até aos nossos dias. Com o aparecimento da paternidade, não só se ofuscou o valor da maternidade, como se destituiu a mulher do seu lugar na sociedade. Como a paternidade não é tão patente como a maternidade, o estabelecer da paternidade passou a ser a pedra angular da sociedade patriarcal que insistiu em controlar o comportamento reprodutivo das mulheres. Assim nasceu o valor ou contravalor da virgindade e outras formas de domínio da mulher.

Conclusão – Enquanto Deus foi conceptualizado como Mãe, a mulher era respeitada, admirada e vivia em pé de igualdade com o varão. Com a conceptualização de Deus como Pai, a mulher foi destituída da sua dignidade, dominada, torturada, vituperada, vexada e ultrajada até aos dias de hoje, na sociedade ocidental e em outras sociedades.
Pe. Jorge Amaro, IMC


1 de abril de 2024

Cosmovisão, Ciência e senso comum

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Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a Terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra.» Deus disse: «Também vos dou todas as ervas com semente que existem à superfície da Terra, assim como todas as árvores de fruto com semente, para que vos sirvam de alimento.

E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus e a todos os seres vivos que existem e se movem sobre a Terra, igualmente dou por alimento toda a erva verde que a terra produzir.» E assim aconteceu. Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o sexto dia.
Génesis 1, 28-31

A ciência veio substituir o mito na explicação da realidade. Os romanos viam as tempestades como batalhas entre os deuses; os gregos entendiam que os raios eram lanças dos deuses contra os humanos. Hoje sabemos que as tempestades se formam quando ar quente e húmido sobe rapidamente para as camadas mais altas e mais frias da atmosfera, formando nuvens e chuva. Os raios são uma forma de eletricidade que se desenvolve dentro das nuvens. O trovão é provocado pelo ar quente que se dilata até rebentar.

Desde as origens da humanidade, a nossa espécie tem perseguido afanosamente o conhecimento. Chamamos ciência ao conjunto de técnicas e métodos utilizados para alcançar o conhecimento. Substantivo proveniente do latim, “scientia”, faz referência ao verbo scire, ou seja, saber.  O Homem foi criado no último dia da criação, pois Deus descansou no sétimo, é a ciência que faz dele o rei da criação. Por ela, o Homem, domina, controla e administra os bens que Deus colocou nas suas mãos.

Ciência – arte – cultura – cosmovisão
O ser humano expressa a sua idiossincrasia, a sua forma de ser, de proceder, o seu pensamento, os seus valores, religião, crenças, filosofia, etc., nas artes e não na ciência. A arte expressa conhecimento, a ciência é um instrumento para conhecer, compreender o mundo à nossa volta, explorando as suas possibilidades no sentido de tornar, pela tecnologia, a nossa vida mais aprazível.

A ciência tem que ver com o nosso pão quotidiano; como tal, é pragmática, objetiva e é trabalho. A arte não tem que ver com o nosso pão quotidiano, pois é o que fazemos por amor; por isso é subjetiva. Há sempre um objetivo naquele que quer conhecer, enquanto o que se expressa numa arte não tem objetivo preciso, procura simplesmente uma forma de expressão. O objeto da ciência é o não conhecido, o da arte é o já conhecido.

O ser humano cultural não se expressa na ciência e a sua cosmovisão não é objeto da ciência nem interessa à ciência. Porém, esta tem o condão de modificar a nossa cosmovisão de um momento para a outro. Pensemos, por exemplo, na revolução copernicana, quando o Homem descobriu que não era o Sol que girava à volta da Terra, mas, pelo contrário, que era esta que girava à volta daquele. Qualquer descoberta científica pode virar o nosso pensamento do avesso e obrigar-nos a repensar as coisas e a olhar para a realidade com outros olhos.

A cultura evolui, a ciência revoluciona
Há revoluções sociais que não têm nada que ver com a ciência. A chamada Revolução Francesa, pode antes ser vista com uma evolução lenta da monarquia absoluta até se tornar obsoleta. Neste sentido, todas as revoluções sociais podem ser vistas como evoluções, para quem tiver olhos para ver e prever, como os profetas de um tempo.

Pura e verdadeira revolução é uma descoberta científica – não se previa e a todos apanha de surpresa. Tem a potencialidade de nos tirar o tapete debaixo dos pés, de nos deixar boquiabertos, confusos, escandalizados, traumatizados e até agressivos. Imaginemos o que foi para as pessoas religiosas quando Darwin descobriu que o ser humano tinha o macaco como parente mais próximo, numa evolução das espécies onde toda as formas de vida vêm de um tronco comum e estão emparentadas umas com as outras. Ainda hoje há gente que rejeita a ideia.

E não é só o povo que rejeita certas descobertas. O próprio Einstein que revolucionou o mundo com a sua teoria da relatividade teve dificuldades em aceitar um postulado essencial da física quântica, o chamado princípio de incerteza de Heisenberg, chegando a dizer que Deus não joga aos dados.

A cosmovisão materialista da qual falaremos largamente é a que governa o mundo da filosofia, ciência e política atuais. Os intelectuais de hoje, se são religiosos, ou seja, se têm fé na existência de Deus, têm vergonha de o afirmar em público, pois a tendência atual é os intelectuais serem ateus ou agnósticos.

Esta atitude materialista perante a vida e a realidade, melhor se coaduna com a física determinista e mecanicista de Newton, que vê o mundo funcionando mecanicamente com a precisão de um relógio, que com a física e mecânica quânticas de hoje, onde até mesmo as leis da natureza escapam ao determinismo. O mundo da física quântica é um mundo mágico, onde o material e o espiritual se tocam, onde o tangível e o intangível se abraçam e o milagre se dá.

As universidades, a política, os intelectuais estão, portanto, desfasados, atrasados, fora de moda, na medida em que ainda não se adaptaram à nova realidade, ainda vivem com uma cosmovisão falsa. Para se atualizarem têm de se divorciar de Newton e casar-se com Heisenberg. O mundo não é nem funciona como eles pensam que é e funciona.

As descobertas científicas que revolucionaram a nossa cosmovisão
No campo da energia

A descoberta do fogo, a aplicação da energia animal (cavalo, burro, boi), os moinhos de vento, as caravelas, os moinhos de água, os moinhos de marés, a máquina a vapor (carvão), os motores de explosão, o automóvel, o barco, o avião (petróleo), a energia hidroelétrica, a energia eólica, a energia solar, a energia nuclear, as baterias que alimentam um sem número de pequenas aplicações que usamos no nosso dia a dia – cada fonte de energia modificou o mundo e a nossa forma de olharmos para ele e de com ele nos relacionarmos.

No campo da biologia e da medicina
O físico inglês Robert Hooke (1635-1702) publicou os primeiros desenhos de células observadas ao microscópio, impulsionando as pesquisas sobre as unidades fundamentais da vida.

A Evolução das Espécies, de Darwin, veio destronar o livro de Génesis como um livro histórico, e provou que a vida no nosso planeta nasceu no mar e proveio de um tronco comum que faz com que tanto plantas como animais tenham relações de parentesco.

A penicilina – o primeiro dos antibióticos, descoberto por acidente pelo escocês Alexander Flemming em 1928 (embora já existissem estudos anteriores sobre o tema), foi um verdadeiro marco na história da medicina, já que passou a salvar incontáveis vidas de várias doenças infeciosas.

A anestesia – o médico americano Crawford Long (1815-1878) usou pela primeira vez o éter como anestésico geral durante uma cirurgia.

O raio X – o alemão Wilhelm Conrad Röntgen é considerado o grande inventor do raio X (apesar de outros cientistas terem estudado os seus efeitos antes e depois da descoberta), uma forma de radiação eletromagnética que consegue penetrar em objetos sólidos e que passou a permitir que os diagnósticos médicos fossem mais rigorosos, não se baseando apenas em sintomas e cirurgias.

A genética – o monge austríaco Gregor Johann Mendel (1822-1884) criou a ideia de gene, ao estudar os diferentes tipos de ervilhas que nasciam de sucessivos cruzamentos.

A dupla espiral do ADN: a belíssima estrutura do ADN foi creditada aos cientistas Francis Crick e James Watson em 1953. O que surgiu daí: a engenharia genética cresceu muito nos últimos 50 anos, chegando à discussão ética de poder “copiar” seres vivos o que se fez com a ovelha Dolly.

O inconsciente – o neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) publicou nesse ano o seu Estudo sobre a Histeria, demonstrando que o homem não domina completamente a mente e propondo a ideia de que o inconsciente é o responsável pelos desejos e sonhos e por tantos comportamentos reativos do nosso dia a dia.

No campo da guerra
Desde a descoberta do ferro, e da invenção da pólvora, o ser humano parece ser mais criativo e motivado pelo ódio que pelo amor. Muitas descobertas nasceram no âmbito da guerra e só depois foram encontradas aplicações pacíficas para as mesmas. A bomba atómica transformou-se em energia nuclear, o sistema usado nos mísseis teleguiados transformou-se em GPS para nos guiar a nós.

O radar – a equipa de pesquisadores liderada pelo físico escocês Robert Watson-Watt (1892-1973) criou o primeiro radar. Embora fosse originalmente um instrumento de guerra, o radar é atualmente fundamental para a navegação.

O raio laser – Theodore Maiman (1927-) construiu o primeiro laser. Entre outros usos, estes raios servem hoje como bisturis na medicina, réguas na ciência e arma militar.

No campo das comunicações
A prensa de Gutenberg, a fotografia, o cinema, a gravação de som, a rádio e a televisão, o computador que surgiu como uma máquina de escrever com memória, são hoje transversais a toda a atividade humana e integram a maior parte das máquinas que o homem criou, desde o automóvel ao avião, passando pela máquina de lavar.

O telégrafo, o telefone, o fax, a internet, o telemóvel, revolucionaram a forma como os humanos comunicam entre si   e transformaram o mundo já globalizado numa casa comum.

O transístor – os americanos John Bardeen (1908-1991) e Walter Houser Brattain (1902-1987) criaram o transístor. Imagine o mundo sem transístores: não haveria computadores pessoais nem telemóveis.

O satélite artificial – A extinta União Soviética lançou o Sputnik 1 – uma esfera de 58 centímetros de diâmetro e 84 quilos de peso. Os satélites revolucionaram o mundo das comunicações.

No campo da física e mecânica quântica  
A teoria do Big Bang, do padre Georges Lemaître, postula que o Universo teve origem na explosão de um ponto ínfimo, que condensava toda a matéria existente. Por esta teoria, já não é só a Bíblia que fala do princípio e do fim do mundo, pois estes são também o objeto da ciência. Por isso, muitos dizem agora que a Bíblia tinha razão.

A descoberta do telescópio por Galileu para observar a macro realidade e a do microscópio para observar a micro realidade, estão na base dos avanços registados na física moderna, a começar pela teoria da relatividade que revolucionou a forma como o ser humano entende o universo, o espaço e o tempo; que nos disse que a matéria é uma forma de energia e a energia uma forma de matéria. A descoberta das partículas subatómicas e do mundo mágico e imprevisível que elas formam ainda não mudou a nossa forma de pensar, a nossa cosmovisão, mas não tarda que isso aconteça.

Ciência e “cultura aplicada”, ou seja, senso comum
O senso comum é uma forma de conhecimento com base na experiência quotidiana e na opinião pública de um determinado grupo social ou cultura, que é transmitido de geração em geração. É composto por valores e tradições e opera com base numa lógica de probabilidades que garante a confiança do indivíduo de poder viver e relacionar-se da forma mais adequada com o seu mundo, ou seja, que garante a sua forma de ser e estar na vida.

Muito deste senso comum vem da nossa própria experiência, quando aprendemos com os nossos erros. No entanto, a vida é curta, não há tempo para efetuar todas as experiências, além de que seria perigoso fazê-lo, pelo que também podemos aprender com os erros dos outros. Por exemplo, não preciso tomar drogas para saber que são nocivas para a saúde.

Neste sentido, o senso comum é positivo. Por outro lado, o assimilar acriticamente postulados que vêm do passado sem os comprovarmos, abre a porta aos clichés culturais e preconceitos que vão passando de geração em geração, sem que ninguém os ponha à prova ou os confronte. No confronto com o conhecimento científico, com a realidade do presente, alguns destes postulados podem revelar-se como completamente irracionais e, no entanto, as pessoas continuam a agarrar-se a eles porque lhes dão um sentido de segurança. Há um provérbio que explica esta atitude: “Vale mais o mal conhecido que o bom por conhecer”.

O cientista é o que pesquisa para obter conhecimento, para esclarecer uma dúvida, para resolver um problema, para explicar uma reação ou um fenómeno da natureza. Ao contrário do senso comum que muitas vezes consta de uma crença que, mesmo sem verificação empírica, ninguém põe em dúvida, a ciência começa por duvidar de tudo e de todos, já que as aparências iludem.

A ciência nasce como reação ao senso comum. Porém, o senso comum integra a descoberta científica que passa a fazer parte da opinião pública e a ser sinónimo de senso comum. A ciência de ontem vulgarizada, ou seja, assimilada pelo povo, transforma-se em senso comum, da mesma forma que uma descoberta científica encontra a sua aplicação prática na tecnologia.

A ciência mudou a forma como olhamos para o mundo. Esta constatação deu origem ao positivismo como corrente filosófica, que entende que a ciência é o caminho para o progresso e ordenamento da sociedade. É precisamente neste ponto que choca com o senso comum que não quer perder o lugar que ocupa na mente das pessoas.

Há muito que a ciência deixou de ser a expressão da curiosidade inata do ser humano que quer conhecer pelo mero prazer de conhecer. A investigação de ponta requer dinheiro e gera muito dinheiro em patentes tecnológicas. A ciência não é desinteressada no nosso mundo capitalista, é uma mina de ouro. Por isso, o povo ataca-a com mil e uma teorias da conspiração, umas verdadeiras, outras falsas, disseminadas pelas redes sociais.

No caso da medicina, os médicos receitam químicos por tudo e por nada. Em vez de aconselharem as pessoas a fazer exercício, a mudar de dieta, dão um comprimido para reduzir o colesterol que vai desestabilizar o equilíbrio natural do corpo, isto porque os lucros das farmacêuticas são enormes. Uma das razões da morte da minha mãe, confirmada por um médico, foi o facto de estar excessivamente medicada. Não deixa de ser irónico, pois se estava excessivamente medicada é porque excessivamente a medicaram os próprios médicos.

Dissemos que a ciência parte da dúvida e que o senso comum assenta numa crença. Em relação à ciência em si, os cientistas têm uma crença cega na sua capacidade de construir um mundo melhor, enquanto o senso comum, hoje na vanguarda da cultura, duvida mais do que nunca da ciência e dos seus objetivos pouco claros.

A ciência dá lucro, o senso comum é grátis, está orientado para a defesa da vida humana; a ciência nem sempre é a favor da vida humana, procura solucionar o imediato sem ter em conta as repercussões ou efeitos secundários. Por exemplo, o trigo e o milho geneticamente modificados para combater as pestes, acabam por matar as borboletas monarca e desequilibram a natureza. Muitas vezes, a ciência soluciona um problema criando dois ou três. Como diz o povo e bem, não morreu da doença, morreu da cura.

Conclusão: Uma descoberta científica modifica primeiro a nossa maneira de ver a realidade, ou seja, a nossa cosmovisão; posteriormente, a aplicação tecnológica dessa descoberta vai, eventualmente,  modificar a cultura.
Pe. Jorge Amaro, IMC


15 de março de 2024

Cosmovisão e a sua expressão

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Refletimos que a cosmovisão é como a placa-mãe de um computador à qual se agregam elementos como, mitos, lendas, contos populares, crenças, rituais, religiões, arquétipos, símbolos, normas ou regras e valores. Todos estes conteúdos são de alguma forma abstratos, virtuais e precisam de um suporte físico para se fazer ver.

Podemos estudar a cosmovisão de povos antigos que já não existem, os seus mitos e lendas, os seus símbolos e crenças, pelos documentos que nos deixaram. Sabemos muito da cosmovisão, da maneira de viver e pensar de povos como os Vikings do norte da Europa, dos Maias e dos Aztecas da América Central

Para descobrir a estrutura do pensamento de um povo, a sua cosmovisão e os elementos que a compõem, como os mitos e crenças, a religião, as regras e valores, precisamos de estudar os veículos onde esses elementos se encontram plasmados ou expressados. Essas formas de expressão coincidem com as sete artes clássicas. Preferimos dividi-las de uma forma mais antropomórfica, usando os nossos cinco sentidos: artes literárias, gráficas, visuais, auditivas, audiovisuais.

ARTES VISUAIS:  arquitetura, escultura
As primeiras coisas que o ser humano fabricou - martelos de pedra, machados e facas de pedra lascada – foram utensílios que mais tinham a ver com a ciência que com a arte. Estes utensílios estavam ligados ao conhecimento das coisas e à sobrevivência num mundo hostil. Referimo-nos à Idade da Pedra e dos Metais, há milhares de anos, portanto.

Imediatamente após a saída do homem de África, há cerca de 150 000 anos, as primeiras manifestações artísticas que porventura tinham também o objetivo prático de ensinar técnicas de caça, foram as pinturas rupestres, relacionadas com as artes gráficas, pois são, de alguma forma, antepassadas da escrita.  

As três construções mais antigas da humanidade pertencem à primeira civilização humana que o nosso planeta conheceu, o Crescente Fértil, hoje chamado Médio Oriente. São elas: Tell Qaramel, construída há cerca de 11 000 anos AC na Síria, 25 Km a norte de Aleppo; Göbekli Tepe, construída há 9 600 AC no sudeste da Turquia, a 12 km da cidade de Sanhurfa e a Torre de Jericó construída há 8 000 AC nesta que é a cidade mais antiga do mundo.

Podemos estudar as diferentes cosmovisões, desde as mais antigas à mais moderna, pelo tipo de construções criadas pelo ser humano. Os antigos não faziam palácios sumptuosos com piscina e todos os luxos para habitar.

Mais preocupados com o Além do que com o aqui e agora, verifica-se que desde as pirâmides dos egípcios, dos Maias e dos Aztecas, aos zigurates da Mesopotâmia, passando pelas catedrais góticas e pelos templos hindus e budistas, a transcendência, a religião são o principal motivo para construir, não a política nem o bem viver.

É caso para pensar… que deixa para a posteridade este mundo materialista, consumista, utilitarista, pragmático, ateu, agnóstico? Nada ou reflexos do seu vazio interior, arranha-céus, as pinturas chamadas de modernas e contemporâneas que não são mais que quatro rabiscos que uma criança do ensino básico também podia fazer. O ser humano moderno não cria arte, por isso o turismo de hoje vive da arte criada pelos antigos há muitos, muitos anos.

ARTES GRÁFICAS: pintura, desenho, escrita
As pinturas rupestres mais antigas encontram-se na Península Ibérica e França, sendo a mais antiga de há 62 000 anos. No progresso da pintura para a escrita, o documento mais antigo do mundo vem precisamente da cultura mais antiga também, a suméria do Crescente Fértil - a escrita cuneiforme da antiga Mesopotâmia, anterior aos hieróglifos egípcios.

As pinturas rupestres ilustram a cosmovisão do homem pré-histórico, a sua vida, os seus costumes e até os seus sentimentos. Estas gravuras ou manifestações artísticas do Paleolítico, Mesolítico e do Neolítico representam frequentemente cenas de caça, mas também danças e outras cenas da vida diária, fenómenos cósmicos, mitos religiosos, costumes, campanhas militares.

Desde que o Homem começou a pintar, nunca mais deixou de o fazer. Muito do que sabemos das primeiras civilizações da Mesopotâmia, Egito e Grécia foi-nos transmitido por estas gravuras, imagens, desenhos, grafitis deixados por estas civilizações.

A imagem foi a primeira forma de expressão do ser humano e foi a evolução desta forma de expressão por imagens que nos levou aos pequenos desenhos que traduziam ideias - a escrita cuneiforme da Mesopotâmia, juntamente como os hieróglifos egípcios, que foram os antecessores do alfabeto grego e romano.

Outras línguas, como o chinês, mantiveram e mantêm até aos nossos dias uma escrita pictórica, ou seja, cada letra é uma pequena gravura ou desenho que representa um conceito, uma ideia; por isso necessitam de milhares de desenhos para se expressarem. Se considerarmos que o ser humano começou a usar imagens há 40 000 anos e que a escrita só foi inventada há 3 500 anos, a imagem pode ser considerada como a pré-história da escrita.

Desde o início, a imagem nasceu da comunicação e para a comunicação; nasceu da necessidade de comunicarmos e também como forma de comunicação. Atingiu o seu apogeu na segunda metade do século XX, quando foi inventada a fotografia, ou seja, a fixação ou gravação da imagem em fotografia. Na nossa sociedade visual, é frequente ouvir que “uma imagem vale mais que mil palavras”.

ARTES LITERÁRIAS: literatura, provérbios, ciências humanas
Se o ser humano fosse um ser solitário como o tigre, nunca teria desenvolvido uma língua. A língua nasceu no seio da sociedade, da comunidade, como forma de os seres humanos comunicarem entre si. Esta necessidade aconteceu quando os humanos se tornaram bípedes e conseguiram olhar-se nos olhos.
Começou provavelmente por expressar necessidades, como acontece quando viajamos para um país estrangeiro cuja língua não falamos e procuramos comunicar as nossas necessidades por sons e gestos. Numa fase posterior, os seres humanos expressaram emoções, sentimentos, e, mais tarde, pensamentos.

O que verdadeiramente cria um povo é uma obra literária. É impensável o povo judeu sem a Torah, sem os livros da lei e os profetas. O que define e caracteriza o povo grego são a Ilíada e a Odisseia de Homero; ex libris do povo italiano é a Divina Comédia de Dante Alighieri; o que define o carácter do povo espanhol é o Dom Quixote de la Mancha de Cervantes; a alma russa encontra-se em Dostoievski no seu livro Os Irmãos Karamazov. A alma portuguesa ou lusitana está nos Lusíadas de Camões.

Para o rei D. Afonso Henriques, Portugal eram as suas terras, os seus domínios. Foi Camões que criou a nacionalidade; que nos deu uma pré-história, os feitos dos lusitanos, que descreveu o nosso caráter e a nossa história no decorrer da grande epopeia da nossa nação, a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Foi fiel às raízes da nossa língua, escrevendo em verso ao estilo das cantigas de amigo, berço do português.

O provérbio é decerto o género literário que concentra mais a cultura, a idiossincrasia e a cosmovisão em menos palavras. Fácil de recordar porque rima, frequentemente deita mão de uma metáfora ou comparação, ou seja, não usa nunca a linguagem abstrata, mas sim a narrativa e metafórica. O provérbio passa de geração em geração mais facilmente que outra forma de cultura porque é fácil de recordar; as pessoas usam-no na sua vida diária como conselho e como forma de justificar e encorajar comportamentos específicos.

ARTES AUDITIVAS:  música, oratória
A palavra música é de origem grega e significa a “arte das musas”. É constituída por uma associação de sons entremeados por pausas ou curtos períodos de silêncio ao longo de um determinado tempo. A música é, de facto, a arte de combinar sons com silêncio. A história da música acompanha a par e passo o desenvolvimento da inteligência, da linguagem e da cultura humanas. Também há quem pense que a música é anterior à humanidade, se considerarmos o canto melodioso de alguns pássaros.

É provável que na espécie humana a música tenha surgido há 40 000 anos, a julgar pelas cenas de dança que aparecem nalgumas pinturas rupestres e que sugerem um provável acompanhamento musical. Ao longo do tempo, foram aparecendo flautas primitivas e outros instrumentos, como o xilofone. Os instrumentos musicais dividem-se em três tipos: de percussão, de cordas e de sopro. A voz humana é o instrumento musical mais complexo, pois é, ao mesmo tempo, de cordas e de sopro.

A palavra comunica o pensamento, a música comunica o sentimento, a emoção. Neste sentido, é a linguagem de comunicação universal, utilizada como forma de sensibilizar para uma causa, para fins religiosos, para protestar, para acompanhar filmes e intensificar uma mensagem ou emoção. Um filme de terror sem música que lhe é própria, não aterrorizaria ninguém. Tal como a língua, faz parte da idiossincrasia de um povo e fala da sua cultura - por isso existe a chamada música popular. Traduz atitudes, sentimentos e valores culturais de um povo.

Oratória é a arte de falar em púbico comunicando ideias, ideologias e pensamentos com eloquência, articulação e clarividência, no intuito de ensinar ou persuadir os ouvintes e motivá-los a determinada ação. É uma arma muito importante na política e na religião, para o bem e para o mal. Tanto os grandes políticos e filósofos como os profetas foram bons oradores, como Nelson Mandela, Mahatma Ghandi, Martin Luther King. Porém, também os grandes ditadores tinham o mesmo poder de convencer, como Hitler e Estaline.

A oratória tem o dom de unir as diferentes e dispersas vontades numa só, faz de muitas cabeças uma só; transforma os indivíduos numa comunidade ou numa massa, num rebanho, tanto para o bem como para o mal.  

ARTES AUDIOVISUAIS: teatro, cinema, dança
As artes audiovisuais combinam o som e a imagem. Por isso têm mais força que o som e a imagem em separado. O teatro, o cinema e a dança são algumas das mais importantes artes que movem as multidões e também a economia.

Antigamente, os grandes atores de cinema iniciavam a sua carreira no teatro, e o cinema era mais parecido com o teatro. Favoreciam-se aptidões como a expressividade, tanto linguística como corporal, a dicção, o timbre de voz. Hoje, o cinema é mais ação que diálogo, pelo que os dotes do ator de teatro ficam mais reservados ao teatro e menos ao cinema. O teatro está em franca decadência se o compararmos com o cinema.

Inicialmente, o cinema pretendia comunicar valores, dentro do binómio herói/vilão, em que o herói sempre vencia. O cinema moderno, porém, já não é usado com fins pedagógicos, mas sim para mostrar a realidade tal qual ela é; por isso, vemos muitas vezes a injustiça triunfar sobre a justiça, a mentira sobre a verdade e o crime sobre a lei e a ordem. Esta situação é perigosa, pois quem vê estes filmes, sem consciência crítica, sobretudo as gerações mais jovens, pode crescer na convicção de que o ser e o dever ser são uma e a mesma coisa, de que na vida vale tudo…

A dança sempre foi uma manifestação cultural muito importante. Culturalmente, pode dizer muito pouco o ballet ou a dança clássica; mas um tango diz muito da cultura argentina, um passo doble diz muito da cultura espanhola, e o samba representa bem a cultura brasileira. Todos os povos têm uma forma própria de bailar. Se quem canta reza duas vezes, quem dança reza três.

“Ars lunga vita brevis”, a arte é eterna, a vida é breve. Ao cultivar uma arte, o indivíduo entra numa relação simbiótica com ela. Ele dá-lhe a sua temporalidade, elevando essa arte a um novo máximo ou record; ela dá-lhe a sua eternidade, tanto na mente da comunidade humana, humanizando-o, como na mente de Deus, fazendo-o seu filho.

Conclusão: "Ars lunga vita brevis" - "As artes são eternas, a vida é curta" Usa a tua vida para cultivar artes e valores humanos e serás eterno, viverás para sempre, em Deus e na memória da humanidade.
Pe. Jorge Amarao, IMC




1 de março de 2024

A Cosmovisão e os seus componentes

Sem comentários:

Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer. João 15, 5

É n’Ele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, Atos dos Apóstolos 17, 28

Para o cristão, Cristo é o Caminho a Verdade e a Vida; é a cepa à qual se conectam todos os ramos para receber a seiva da vida. Desconectados d´Ele definhamos, secamos e morremos. Como ramos enxertados em Cristo (Romanos 11, 11-24), é n´Ele que nos movemos, somos e existimos e sem Ele não poderíamos fazer nada, d´Ele recebemos a vida, a salvação. Cristo é para o cristão a placa-mãe (motherboard), o fundamento, o alicerce onde assenta a sua vida, a pedra angular que o mantém de pé (Efésios 2:20-22).

Cosmovisão, a placa-mãe da nossa mente
A placa-mãe (ou motherboard, em inglês) de um computador é uma placa normalmente em plástico verde rígido, que tem impresso em cobre ou alumínio um circuito elétrico que permite interligar todos os componentes de um computador - o processador, a memória, a CPU, a placa de vídeo, a placa de rede, a placa de áudio, as portas de comunicação do computador com o exterior que permitem a sua ligação a outros dispositivos.

A placa-mãe de um computador serve-nos perfeitamente como alegoria ou metáfora do que é uma cosmovisão e de como esta é composta por elementos que individualmente são diferentes entre si, com uma função diferente, mas que assentam numa mesma placa, com base na qual interagem harmonicamente. Vejamos quais são estes elementos e qual a sua função ou contributo para a cosmovisão.

A cosmovisão, como sistema ou alicerce do nosso pensamento e da nossa vida, é um conjunto ordenado de muitos elementos. Tal como o nosso ADN ou código genético é composto por muitos genes, assim uma cosmovisão é composta por muitos elementos. Alguns desses elementos são:

O mito
Na linguagem dos nossos dias, a maior parte das vezes que ouvimos a palavra “mito” é em referência a algo que não é verdadeiro. Quando dizemos ou ouvimos “isso é um mito”, quer dizer, hoje em dia, “isso é falso”. Na realidade, um mito pode não ser ou, melhor dizendo, nunca é histórico, mas também nunca é falso. Histórico e verdadeiro não são sempre sinónimos. Histórico significa que aconteceu; os mitos são relatos que descrevem realidades e como tal nunca aconteceram, porém, o que dizem dessas realidades é completamente verdadeiro no tempo e nas sociedades onde eles nasceram.

No contexto da antropologia cultural, o mito é uma explicação pré-científica da realidade, um relato fantástico e fantasmagórico de tradição oral, geralmente protagonizado por deuses que encarnam e representam as forças da natureza, assim como aspetos gerais da condição humana.

Dentro da antropologia cultural, os mitos pertencem a uma disciplina chamada cosmogonia, que se compõe de relatos sobre a origem, a natureza e a função de tudo o que existe e que o ser humano não compreende. Como conjunto de mitos, a mitologia é uma forma de dar sentido à existência humana. As suas diversas histórias nasceram para saciar a curiosidade humana acerca de questões fundamentais como "de onde viemos?", "para onde vamos?" ou "por que motivo num dia chove e no outro faz sol?".

Exemplos de mitos
O mito de Cronos – Cronos era o deus do tempo, daí as palavras cronologia, cronómetro, para medir o tempo. Na Grécia antiga, a realidade do tempo era explicada pela existência de um deus que era o senhor do tempo; este senhor paria filhos e depois de os parir comia-os. É claro que não é histórico, mas é verdadeiro.

Ou seja, numa mentalidade primitiva serve perfeitamente para explicar o tempo. Cada dia em que acordo e me levanto pelo fato de estar vivo, tenho um dia a mais na minha existência, um dia para viver; ao fim deste, quando me deito, tenho um dia comido, consumado e consumido, um dia a menos na minha existência.

O mito de Andrógino – Na tradição grega o pai dos deuses, Zeus, criou um ser que possuía os dois géneros; como se fosse um homem e uma mulher colados pelas costas. Posteriormente, Zeus teve medo da sua criatura, como o ser humano tem medo de tantas coisas que cria, como a bomba atómica e utilizou a arma de sempre, a divisão: “divide et impera” e dividiu o ser andrógino em dois, criando assim o varão e a mulher.

Assim se criou a realidade do amor romântico; como inicialmente estavam unidos, a tendência é voltarem a unir-se; daí a atração sexual. Os dois, homem e mulher, passam metade da sua vida à procura da sua cara metade ou da sua metade da laranja, como ainda hoje se diz.

O mito de Adão e Eva – A Bíblia diz, em três relatos mitológicos da criação do ser humano, o que a mitologia grega diz num só.

Em Génesis 1, 27 - Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. É-nos dito que o varão e a mulher, criados os dois à imagem e semelhança de Deus, são iguais em dignidade.

Em Génesis 2, 7 - O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. É-nos dito que o ser humano está ligado a tudo o que existe, quase aludindo ao facto de ser fruto de uma longa evolução.

Em Génesis 2, 22 - Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. É-nos dito que os dois são carne da mesma carne e pertencem um ao outro.

O mito da origem do mal – Tanto a mitologia grega como a hebraica culpam a mulher pela origem do mal. Assim como lhe atribuem a curiosidade “científica” por saber e conhecer e descobrir a razão das coisas. Na mitologia grega, Pandora era a mulher de Zeus que abriu por curiosidade a caixa onde estavam todos os males; ao descobrir, Zeus veio a correr para a fechar, mas já muitos males tinham escapado e logo se reproduziram em muitos outros, numa sequência de causa e efeito. Na mitologia hebraica, Eva comeu e deu a comer a Adão o fruto proibido.

O mito sobre o amor e a morte – Orfeu, músico e cantor a quem o pai Apolo tinha dado uma Lira, enamorou-se perdidamente de Eurídice com a qual ia casar. Porém, antes do casamento, Eurídice foi mordida por uma cobra ao fugir de um admirador e morreu; inconsolável, Orfeu desceu ao mundo dos mortos e pediu a Hades que lhe devolvesse a sua esposa. Este aceitou, na condição de que, ao sair do mundo dos mortos com ela, não olhasse para trás. Desconfiado, Orfeu como sempre acontece com o amor romântico, olhou para trás e voltou a perder Eurídice. Envolvido numa tristeza profunda, não comia nem bebia nem respondia à sedução de outras mulheres, pelo que estas decidiram matá-lo; pela morte, uniu-se finalmente à sua esposa.
    
O mito de Narciso – Narciso, filho do deus do rio, Cefiso, possuía uma beleza estonteante que despertava o amor de muitas ninfas, entre as quais Eco. Porém, Narciso, absorvido por si mesmo, era arrogante e orgulhoso, apaixonado pela própria imagem quando se mirava nas águas plácidas do rio. Nestas se afogou um dia, depois de tanto se admirar.

Em psicologia, o narcisismo é o nome dado a um conceito desenvolvido por Sigmund Freud que determina o amor exacerbado de um indivíduo por si próprio; sinónimo de egoísmo, de uma pessoa centrada em si mesma que nega a dimensão social da pessoa humana.

Lendas e contos populares
Os protagonistas das narrativas mitológicas são sempre deuses; os das lendas são pessoas humanas, heróis da antiguidade em determinado momento histórico que se destacam pelo seu contributo para a humanidade. Por esta mesma razão, o mito é historicamente atemporal, a lenda é histórica, embora exagere os factos, distorcendo-os, dando-lhes um ar fantástico e excessivo para aumentar a fama de alguém importante do passado.  

Há personagens no imaginário humano, meio históricos meio ficcionais, que cativam a mente humana porque cada um deles reflete uma faceta da nossa personalidade. O rei Salomão, Péricles, Aquiles, Heitor, Ulisses, Alexandre Magno, Genghis Khan, Júlio César, Spartacus, Carlos Magno, Godofredo de Bulhões, Joana d´Arc, Marco Polo, Vasco da Gama, Cristóvão Colombo, Robin dos Bosques, etc…

Personagens como Robinson Crusoé, Guliver, Tarzan; o Super-homem, o Homem Aranha, a Branca de Neve, a Cinderela… são personagens ficcionais que pertencem a um outro género literário semelhante ao da lenda: o conto popular. A única diferença é que a lenda parte de um personagem histórico e engrandece-o para além da realidade, o conto popular é todo ele atemporal pois sempre começa com “era uma vez, num país distante”; nunca nos situa no tempo nem no espaço, mas sim dentro da psique humana, revelando aspetos desta.

Crenças
Muito do que dissemos do mito vale para a crença. Pois todo o mito é uma crença, mas nem todas as crenças são mitos. A crença é mais genérica, ou seja, muitas das nossas crenças são também mitos. O mito pertence ao reino da filosofia, antropologia cultural ou cosmogonia, a crença pertence mais ao reino da psicologia, da religião e espiritualidade, pois se trata de uma convicção interior sobre um aspeto da realidade que está para além dos cinco sentidos e de toda a verificação empírica.

A crença é a aceitação mental ou convicção de uma “verdade”, ideia ou teoria com ou sem provas empíricas. É ter como verídico algo que não pode ser provado pela ciência. Neste sentido, entra no campo do conhecimento intuitivo e não no do conhecimento logico-dedutivo da ciência.

A crença pode ser irracional, ou seja, supersticiosa ou razoável. O Concílio Vaticano I define a Fé como uma crença razoável. Bruxarias, magias, conferir a um objeto material como uma chave, uma ferradura, um corno, valor ou poder espiritual é uma crença irracional e, portanto, uma superstição, um regressar ao tempo em que os animais falavam e as coisas tinham alma: ao animismo.

Há crenças na vida moderna comprovadamente falsas e, no entanto, continuam a existir porque cumprem uma função positiva. Até as crianças sabem que o Pai Natal não existe, no entanto, no imaginário coletivo consciente ou inconsciente, este representa, personifica o amor, a bondade e generosidade de um pai, de uma mãe, de Deus como nosso Pai.

Rituais
Porque os mitos são uma narrativa que explica o porquê de muitas realidades humanas e da natureza, o rito ou ritual é o pôr em prática, agir, expressar ou aplicar o mito ou crença na vida real. O objetivo da atuação ou expressão do mito através do rito é o de reforçar a crença no mito.

Uma cerimónia ritual, sagrada ou não sagrada, é um ato que sempre se realiza da mesma maneira e que celebra uma crença ou mito importante no contexto de uma cultura ou religião. A realização ou celebração de rituais tem uma função psicológica e espiritual muito importante; alivia o stress e a ansiedade, aumenta a autoconfiança, reforça a fé ou crença. Os rituais relembram-nos o que é mais importante na vida e mantêm-nos unidos à fonte vital; dão-nos um sentido de estabilidade e continuidade na nossa vida.

Realizamos montes de rituais, mesmo na nossa vida moderna e nem nos apercebemos de que os realizamos. Mas o facto de o fazermos, prova a sua importância e função no nosso equilíbrio emocional e racional. A entrada na vida adulta, as despedidas de solteiros, o cortar da fita numa inauguração, o atirar ao ar o chapéu no dia da licenciatura, a noiva que atira o ramo de flores para trás de si para uma donzela o apanhar, a celebração do dia de anos, o apagar de uma vela por cada ano.

A nossa vida cristã está cheia de ritos. Também todos os sacramentos têm por trás uma crença e um ato cerimonial. A imposição de mãos, a bênção, o batismo, são a porta de entrada para a comunidade – de facto, o padre, vem à porta da igreja receber o neófito. A eucaristia é a reconstituição da vida, doutrina, paixão e morte de Cristo, pois fazemo-la em memória d’Ele e mantém-nos unidos como comunidade. A confissão é uma catarse libertadora do negativo da minha vida; quando ouvimos “eu te absolvo” (“ego te absolvo” em latim) sentimo-nos mais limpos, com vontade de começar de novo. A unção dos doentes é um refrigério na nossa dor.

Religião
Como atrás dissemos, é ela própria uma cosmovisão, pois responde à pergunta “de onde viemos” e “para onde vamos”, assim como dá sentido, razão e finalidade a tudo quanto existe, estruturando não só a natureza, como também a vida dos homens em relação a si mesmos, a Deus e à Natureza. Entre muitas coisas, a religião engloba crenças, mitos e rituais.

Arquétipo
É um elemento da filosofia grega, sobretudo da neoplatónica, que designa ideias, modelos, primigénios ou protótipos, paradigmas do comportamento humano que residem no inconsciente coletivo da humanidade, como demonstrou Carl Jung, discípulo de Freud. Para Platão, os arquétipos são formas mentais, ideias primordiais impressas na alma antes de esta assumir um corpo.

Jung descobriu no nosso inconsciente coletivo 12 paradigmas, modelos ou padrões de comportamento que podem coincidir ou não com funções de indivíduos na sociedade ou profissões, mas também configuram uma maneira de ser, estar e comportar-se perante si mesmo e os outros. Sãos estes o Sábio, o Inocente, o Explorador, o Governante, o Criador, o Cuidador, o Mago, o Herói, o Vilão, o Amante, o Tolo, o Órfão. A lista podia continuar, mesmo em relação a personagens significativos que configuram modelos padronizados de comportamento.

Para além destes que se restringem a formas de comportamento, há outros paradigmas impressos no nosso inconsciente coletivo, que se referem mais à sociedade e à maneira como esta opera. Por exemplo, eu tenho como paradigma ou arquétipo o processo Egito – Deserto – Terra Prometida. Karl Marx, apesar de ser declaradamente ateu, seguia consciente ou inconscientemente este arquétipo no seu materialismo histórico. Para ele, o Egito era o capitalismo, o deserto era a ditadura do proletariado e a Terra Prometida o comunismo ou a sociedade sem classes.

A recuperação de um vício segue também este arquétipo. O Egito é o vício que te retirou a liberdade e o controlo da tua vida; o deserto é o preço apagar, a purificação do corpo e da mente das toxinas que o escravizam; nele se sente a vontade de voltar atrás, como o povo judeu, ou a síndrome de abstinência para o que luta contra um vício, e por fim, a Terra Prometida quando estás completamente livre deste vício.

Símbolos
Emblemas, formas ou sinais que contêm um significado poderoso dentro da cultura, representando o seu modelo de vida ou a sua tradição ancestral, ou algum elemento considerado icónico ou totémico e identificando-o, como a cruz com o cristianismo, por exemplo.

Normas, regras e leis
Toda a cosmovisão contém também um código de leis, normas ou regras de conduta para harmonizar a convivência entre os indivíduos, para determinar os direitos e os deveres na relação dos indivíduos entre si e com a comunidade em geral. Um regulamento pelo qual as empresas optam por governar-se, quer explicitamente (formato legal), através de um protocolo ou subjetivamente.

Nem todas as leis são ditas, nem escritas em pedra. Há leis ou normas não escritas e, no entanto, todos as observam. A forma como vestimos obedece muitas vezes a uma norma não escrita, tal como o abrir a porta a alguém e deixá-lo passar primeiro, o não meter o dedo no nariz em público e tantas outras pequenas coisas às quais obedecemos e que não estão escritas em nenhum lado nem obedecem a nenhum código de conduta.

Valores
São mais inerentes à natureza humana em geral que a uma cosmovisão em particular. Valores como a liberdade, a igualdade, a justiça, a verdade, a honestidade, o amor, a fidelidade, são invariáveis no tempo e no espaço. O dever, o compromisso, configuram a vida humana e são invariáveis de cultura para cultura ou de época para época. Uma determinada cosmovisão pode ter uma interpretação dos mesmos um pouco distinta, sem variar o fundamental. 

Conclusão – Como na placa-mãe ou motherboard de um computador se inserem todos os componentes que o fazem funcionar como um todo harmonioso, assim a cosmovisão é composta por mitos, ritos, crenças, normas, símbolos, arquétipos e valores que dão sentido e forma à nossa vida.
Pe. Jorge Amaro, IMC




1 de fevereiro de 2024

Cosmovisão, Cultura e Natureza Humana

1 comentário:

Natureza humana, cultura e cosmovisão são conceitos implicitamente ligados, porque cada um deles tem a ver com os outros dois. Procuremos definir primeiro cada um deles individualmente e em separado, para depois ver o que os faz interdependentes entre si.

NATUREZA HUMANA
Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. Génesis 2, 7

A vida no nosso planeta tem uma única origem. Por muito diferentes que nos pareçam hoje as plantas e os animais, todo o ser vivo do nosso planeta tem antepassados comuns. A vida procede de um tronco comum.

O ser humano é um dos 8,7 milhões de seres vivos que habitam este planeta. Pertence ao reino animal, à classe dos mamíferos, ao subgrupo dos primatas ou hominídeos, sendo primo/irmão dos macacos, gorilas e chimpanzés com os quais partilha 98% do ADN. É filho de um pai ainda desconhecido, tendo nascido há 5 milhões de anos na África Oriental, mais propriamente no vale mais profundo e extenso do nosso planeta, o Vale de Rift.

Ao contrário dos outros seres vivos que pouco ou nada evoluíram ao longo de milhões de anos, e viveram e vivem ainda hoje no mesmo habitat, o ser humano evoluiu a ponto de transcender o seu habitat original. Saiu de África há pouco mais de 200 000 anos e colonizou todo o planeta não só em termos geográficos, como também em termos de domínio de todas as outras espécies de seres vivos.

Por que motivo só a nossa espécie evoluiu? Porque nós e só nós somos, no entender de Karl Marx, o momento em que a Natureza ganhou consciência de si mesma. É um mistério que até agora a ciência não conseguiu desvendar. Sabemos que evolutivamente somos descendentes de um primata que, para satisfazer as suas necessidades e sobreviver, começou instintivamente por se adaptar ao meio em que vivia, procurando depois utilizar da melhor maneira os recursos que o meio lhe oferecia. Ao princípio, vivia como os animais em simbiose com a natureza.

No esforço de conhecer o meio em que vivia para melhor se adaptar a ele, o ser humano desenvolveu as suas capacidades cognitivas, a ponto de se apoderar do seu meio ambiente. Assim nasceu o homo sapiens que, mais do que adaptar-se ao meio, procurou adaptar o meio a si.

O que nos define como seres humanos
Os milhões de anos de evolução fizeram de nós humanos, sem deixarmos de ser animais. O biólogo Konrad Lorenz, encontrou inúmeras semelhanças entre o comportamento humano e o comportamento animal. Muitas das nossas reações e decisões perante situações da vida têm mais de animal que de racional.

Ao fim e ao cabo, não perdemos o cérebro reptiliano comum a todos os seres vertebrados, nem o mamífero comum a todos os mamíferos. Estes cérebros são anteriores ao autenticamente humano, o neocórtex e estão, por assim dizer, mais perto do nosso ser, porque o cérebro reptiliano que comanda todas as funções vitais e de sobrevivência está sempre conectado; o mamífero está quase sempre conectado, mas às vezes desconecta-se; o neocórtex está quase sempre parcialmente desconectado. Por isso, para que um comportamento seja autêntica e genuinamente humano, o neocórtex conectado tem de desconectar os outros dois, sobretudo o reptiliano.

Neste sentido, há caraterísticas que parecendo que são exclusivamente nossas, são na verdade comuns aos outros animais próximos de nós na escala evolutiva; a única diferença é que em nós estão mais desenvolvidas. Por exemplo:

- Adquirir conhecimentos e ter a capacidade de os transmitir socialmente, através de alguma forma de linguagem, também outros animais a têm, como a orca. Adaptar-se ao meio e às condições de vida que vão variando, também muitos animais o fazem, como a barata que se defende de todos os venenos que criamos para a matar;

- A vida em sociedade também as formigas, os leões, os patos, os gansos, as abelhas, os elefantes, os chimpanzés a têm. A única diferença é que a nossa é mais complexa e talvez mais democrática, onde a democracia existe;

- Amar os filhos a ponto de dar a vida por eles, por muito nobre que pareça, é algo que temos em comum com qualquer mamífero, é puro instinto materno. O que verdadeiramente temos de único é tudo o que se situa no neocórtex, o maior dos nossos cérebros. Vejamos então o que é exclusivamente humano e nos identifica como tal.

Autoconsciência – cogito ergo sum
Só o ser humano é autoconsciente a partir dos 6 ou 7 anos de idade. A autoconsciência é a divisão do nosso psiquismo em dois, o que nos permite ser observadores e observados, conhecedores e ao mesmo tempo matéria do nosso conhecimento. “Conhece-te a ti mesmo”, gritava Sócrates nos primórdios da filosofia ocidental.

Esta nossa autoconsciência não diz respeito só ao presente. Como a vida humana decorre em três tempos que são sempre interativos, esta autoconsciência estende-se ao passado como memória histórica que nos dá o feedback de quem somos: o conhecimento dos nossos talentos, valores, defeitos e limitações como por exemplo a morte. Só os seres humanos estão cientes da própria finitude, de que um dia morrem e deixam de existir, ao menos no espaço e no tempo.

O conhecimento do passado, de quem realmente somos, é depois utilizado pela nossa razão para se estender ao futuro e programá-lo, usando a capacidade imaginativa e a mente abstrata que só o ser humano tem para se projetar para além do imediato. Certas filosofias do Extremo Oriente exortam-nos a colocar tanto o passado como o futuro de parte. Esquecem-se de que os que vivem num eterno presente, sem passado nem futuro são os animais.

Cogito ergo sum – Penso logo existo. No puro presente em relação com os outros, a sociedade, o meio ambiente físico e geográfico, a autoconsciência, ou seja, a razão funciona como um computador, que analisa, recolhe dados sobre um determinado problema e projeta e arrisca soluções.

Para além da autoconsciência e da razão, a vida humana assenta sobre dois valores: liberdade e igualdade.

Liberdade
Enquanto que todos os animais vivem em simbiose com a Natureza que os regula, governa e guia por intermédio dos instintos, o ser humano é o único animal que se emancipou da Natureza. Liberdade, autonomia, independência são os valores em que assenta a vida humana do indivíduo, da pessoa.  Como dissemos, há outros animais que vivem em sociedade, mas nestas sociedades o indivíduo não existe para si mesmo, é antes escravo da sociedade a que pertence.

O homem é livre em relação aos outros, não é escravo de ninguém nem vive em função de ninguém, mas dele mesmo; é livre em relação ao seu substrato animal, pois tem poder para controlar os seus instintos básicos e adiar a satisfação imediata.

O ser humano é o único que tem a vida nas suas mãos, que tem poder sobre ela para lhe dar um sentido e uma direção. Possui livre arbítrio, vontade própria, que lhe permitem decidir sobre a totalidade da sua vida, assim como sobre cada uma das partes. Pode equivocar-se nas decisões que toma e pode ter de pagar pelas consequências nefastas das suas opções.

Parte da liberdade em relação ao meio, aos outros e a si mesmo, reside na capacidade para se auto transcender; em relação à matéria, por meio do progresso científico e tecnológico; em relação às coisas materiais, desenvolvendo o eu espiritual, tanto na sua relação com Deus como com as coisas e os outros, expressando-se simbolicamente por meio da cultura, arte, música, religião, hábitos, costumes, vestuário, etc.

Igualdade
O ser humano é um ser intrinsecamente social, nasce de uma relação amorosa, cresce e transforma-se num ser humano autêntico apenas se for amado incondicionalmente, e sempre vive como membro de uma família, como parte de uma comunidade, organização ou instituição. Individualmente ou é pai ou mãe, filho ou filha, avô, avó, tia, tio, sobrinho, sobrinha. Não há existência humana para além destas categorias e o facto de pertencer a qualquer uma delas coloca-o numa relação com os outros.

O outro é um outro eu; não um tu, uma entidade externa, estranha, estrangeira, distante, mas sim o meu próximo, tão próximo que é um outro eu, um alter-ego, de onde provém a palavra altruísmo. O amor é o valor mais alto na vida social, viver é amar. A empatia, a misericórdia e a compaixão são o que mantém os indivíduos unidos em grupos.

O que me é devido a mim, é-lhe devido a ele, pois é um ser humano como eu e todos viemos do mesmo tronco comum nascido no Vale do Rift há 5 milhões de anos. A igualdade e a convivência na sociedade assentam no princípio de que os meus direitos são os deveres do meu próximo e os meus deveres são os direitos do meu próximo.

A vida em sociedade faz dos indivíduos cidadãos com direitos e deveres. Nasce o Direto para governar a sociedade, e a ética que discerne o dever ser e define as pautas do comportamento social. A vida em sociedade criou a linguagem escrita e falada para a comunicação entre indivíduos, com o objetivo de trabalhar em equipa e fomentar a união, a paz e a harmonia.

Pode a natureza humana mudar?
Depois, Deus disse: «Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.» Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Génesis 1, 26-27

Fomos criados à imagem e semelhança de Deus e se Deus não muda, a natureza humana também não muda. Se a natureza humana mudasse, Deus teria que encarnar uma e outra vez ao longo da História, em cada uma dessas naturezas humanas em mutação para ser também para essas gerações Caminho, Verdade e Vida. Como a natureza humana não muda, é Deus e a sua Palavra recolhida na Bíblia que inspiram e levam a Deus, tanto os homens que viveram há 2 000 anos como os que viverão daqui 10 000 anos, se ainda existirmos como espécie.

Os valores humanos são prova de que a natureza humana não muda, nem no tempo de geração em geração, nem no espaço entre uma cultura e outra. Os conceitos de justiça, de verdade, de honestidade, fidelidade, amor, compaixão, etc. são invariáveis no tempo em todas as culturas. O sentimento de amor que experimentaram Cleópatra e Marco António é o mesmo que anos mais tarde experimentaram Romeu e Julieta, e experimentam e experimentarão os enamorados em todo o tempo e lugar.

Separados pelo tempo, pelo lugar e pela cultura, o profeta Amós e o Bispo Óscar Romero usaram exatamente a mesma bitola para discernir o que é justo e o que não é. Mahatma Ghandi usou o mesmo conceito de não violência que Jesus usou séculos antes. Os povos do Crescente Fértil construíram pirâmides e ofereceram sacrifícios humanos aos seus deuses. Mas, assim como os sumérios e os egípcios, no crescente fértil, os maias e os astecas na América Central também construíram pirâmides e, no entanto, esses povos nunca souberam da existência um do outro.

A natureza humana, o que o ser humano é essencialmente, não muda. Em filosofia, a essência, o ser não muda; o que muda são os acidentes, as variáveis, as circunstâncias. Pode variar e mudar a nossa compreensão da natureza humana, tal como podemos descobrir em nós talentos que pensávamos que não tínhamos; no entanto, já lá estavam, se bem que nos fossem desconhecidos. Podemos adquirir novas formas ao nos adaptarmos ao meio, por exemplo, perder o rabo porque já não andamos nas árvores, mas o que é essencialmente humano permanece imutável no tempo e no espaço.

CULTURA
Como é que a natureza humana não muda se temos diversidade de culturas e línguas e a língua é considerada como a alma de uma cultura? Dois são os fatores que causaram a diversidade de culturas e línguas ao longo da história da humanidade.

O primeiro foi a ausência de comunicação entre os povos. Pelo mesmo motivo, num futuro cada vez mais globalizado, a diversidade de línguas e culturas deixará de existir ou será muito atenuada. O segundo foi o fator geográfico: diferentes povos habitavam em diferentes latitudes e longitudes, com diferenças climáticas.

A diversidade de culturas e línguas seria então a adaptação dos seres humanos a diferentes topografias geográficas. Por exemplo, não é o mesmo viver na montanha e à beira mar; quanto aos diferentes climas, não é o mesmo viver nos trópicos, com duas estações, e viver numa zona temperada com quatro estações, ou no Ártico.

Os povos indígenas que vivem no Ártico têm inúmeras palavras para dizer “neve”, enquanto que na Etiópia, em África, a mesma palavra designa neve e geada que são duas coisas diferentes. Por outro lado, notamos que as línguas dos povos nórdicos pelo fator frio são mais consonânticas, e a boca mal se abre, e as línguas dos povos tropicais mais vocálicas, fazendo com que a boca se abra completamente.

Também a cor da pele, dos olhos e do cabelo, o formato dos olhos, do nariz, da boca e dos lábios, como já explicámos noutros textos, são uma adaptação do ser humano ao meio em que habita pelo menos durante 25 000 anos. Uma tribo de pigmeus do Congo que fosse habitar para a Noruega, daqui a 25 000 anos não se distinguiria dos noruegueses.

Salvo algumas pequenas diferenças, a adaptação do ser humano ao meio é comum a outros animais. A adaptação do meio a si mesmo, criando cultura, é própria apenas do ser humano. Só ele cria uma cultura como um habitat artificial, no sentido correto da palavra “ars facere”, fazendo arte. Neste sentido, o homem é um ser cultural, pois não se contenta com o que a natureza lhe dá, mas cria uma segunda natureza na qual habita, que é a cultura.

O ser humano feito à imagem de Deus é criador como Ele. A única diferença é que, enquanto Deus cria do nada, o ser humano cria combinando e misturando os elementos da criação. A cultura é como a casa que o ser humano constrói com elementos que a natureza lhe proporciona. 

A Natureza não dá casas, é o Homem que as constrói; a diversidade de casas representa a diversidade de culturas, pois diz respeito ao lugar onde são construídas - telhado subido onde neva, telhado mais baixo onde não neva. O mesmo se dirá do vestuário e de tudo o que o ser humano faz, inventa ou fabrica com a sua mente criadora, para tornar a vida mais confortável.

A árvore é natureza, a madeira, a cadeira e a mesa são cultura; o cabelo é natureza, o penteado é cultura; o som é natureza, a palavra e a música são cultura; o fogo é natureza, a bigorna, a churrasqueira são cultura.

O mito de Tarzan ensina-nos que no ser humano, o fator cultural é mais importante que a Natureza. Se um bebé humano for criado por chimpanzés ele será um chimpanzé. Ao contrário, se um bebé chimpanzé for criado por humanos, com a mesma educação que um bebé teria, ele nunca será humano. 

Se no ninho de um pardal colocarmos um ovo de tecelão mascarado, quando este tecelão mascarado for adulto não fará o seu ninho como o faz o pardal em cima de um ramo, mas sim como o faz o tecelão mascarado suspenso de um ramo. O ser humano nasce animal e transforma-se em humano pela cultura. O animal nasce já praticamente em estado adulto, não precisa de tempo de socialização.

A cultura é, ao mesmo tempo, a adaptação do ser humano ao meio e a adaptação do meio às necessidades do ser humano. A cultura é esta interação entre o meio e o ser humano, o ser humano e o meio.

COSMOVISÃO
Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o sexto dia. Génesis 1, 31

Podemos usar o texto bíblico da criação do mundo como metáfora da relação entre cosmovisão e cultura. A cultura é a criação de Deus, o olhar para ela vendo-a como boa é a cosmovisão que Deus tem sobre o que criou. Deus que é amor tem uma visão amorosa de tudo o que criou, por amor.

Deus criou o mundo, o homem a partir do mundo criado por Deus criou a cultura. A cosmovisão é a visão que o Homem tem do que criou. Ao contrário de Deus, nem tudo o que cria é por amor e, como cria muitas coisas por ódio, como os instrumentos da guerra, ao fim não pode dizer que o que criou é bom.

Parafraseando a expressão que diz “Deus fez o mundo, o holandês fez a Holanda”, Deus fez o mundo, o homem fez a cultura, o homem adaptou ou personalizou este mundo, como quem personaliza um computador para responder às suas necessidades.

A cosmovisão é uma abstração da cultura, pois faz desta um objeto de estudo. A cosmovisão é o conhecimento que tenho da minha cultura, a imagem ou representação mental, consciente ou inconsciente que tenho da minha cultura.

Todo o ser humano possui uma cosmovisão, pois é por ela que se guia na vida. Ao mesmo tempo, a cosmovisão possui-nos a nós, porque o que quer que façamos ou pensemos, fazemo-lo dentro e no contexto de uma cosmovisão. Neste sentido, a cosmovisão parece englobar a cultura por ser um conjunto de ideias que um indivíduo tem a respeito do mundo, sendo estas ideias produto da cultura em que está inserido. Conforme for a nossa cultura, assim será a nossa cosmovisão ou visão do mundo.

A cosmovisão é a base de toda a manifestação cultural que é constituída por motivações, pressupostos, crenças, compromissos, certezas e ideias, através das quais se experiencia e se interpreta a realidade, desde o nível subjetivo-privado ao nível objetivo-institucional compartilhado pela sociedade

Conclusão: A natureza humana é o que somos, a nossa essência, a cultura o como estamos e existimos no tempo e espaço. A cosmovisão é a forma como entendemos o nosso ser e estar no mundo.
Pe. Jorge Amaro, IMC


15 de janeiro de 2024

Cosmovisão e Religião

Sem comentários:

O mundo é o meu país, toda a humanidade é minha irmã e fazer o bem é a minha religião, Thomas Payne

A primeira impressão, o que primeiro nos vem à mente é, em psicologia, o mais importante. No caso da diferença entre o conceito de cosmovisão e o conceito de religião, o que primeiro nos vêm à mente é que a cosmovisão parece englobar a religião e não vice-versa. Ou seja, toda a cosmovisão inclui uma religião.

Porém, quando estudamos a religião em si, damo-nos conta de que toda a religião tem uma cosmovisão, ou seja, uma forma de conceber e interpretar a realidade como um todo, e não apenas a parte que mais se refere ao sentimento religioso ou à natureza religiosa do ser humano. Por isto teremos de concluir que não há fronteiras definidas entre os dois conceitos porque um engloba o outro; ou seja, se toda a cosmovisão tem uma religião, toda a religião tem uma cosmovisão.

As religiões como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo podem ser consideradas cosmovisões, assim como as ideologias ou anti-religiões que negam e reprimem a natureza religiosa do ser humano, como o marxismo ou o materialismo histórico e dialético, o ateísmo e o agnosticismo em geral. Estas também podem ser consideradas cosmovisões. Tanto a fé como a falta dela dão uma forma determinada à vida humana.

Uma cosmovisão procura responder a perguntas fundamentais como: Deus existe, como Criador de tudo e de todos, ou o Universo sempre existiu? Que há para além do Universo? De onde venho eu, para onde vou, quem sou e que sentido tem a vida? Onde estou? Como devo ou não devo viver a minha vida? Quais os valores a cultivar e os anti-valores a combater?

Tanto a religião como a cosmovisão dão resposta a estas perguntas. Se respondem às mesmas perguntas, têm o mesmo campo de estudo, pelo que poderiam ser consideradas sinónimos ou, melhor ainda, são uma e a mesma coisa.

As palavras ética e moral são uma e a mesma coisa, ou seja, ambas se referem ao comportamento humano; a primeira de origem grega e a segunda de origem latina. A palavra ética usa-se mais no mundo civil, a palavra moral mais no mundo religioso. Assim, entendemos cosmovisão como sendo o correspondente a ética, pois se usa mais no mundo civil, e religião como moral, pois, como é obvio, se usa mais no mundo religioso.

O fenómeno religioso: “Mysterium tremendum et fascinans”
Não há povo, por mais primitivo que seja, em que não se veja a religião. Bronislaw Malinowski (1884 – 1942)

Houve e há sociedades no passado e no presente sem ciência, arte sem filosofia, mas nunca existiu uma sociedade sem religião. Henri Bergson (1857-1941)

Religare – É um conceito cristão, ou seja, é a forma cristã de conceber o fenómeno religioso. Supõe o conceito de separação. O pecado separa-nos de Deus, a religião volta a ligar-nos a Deus pois, por esta, Deus nos perdoa.

Vale ainda hoje a definição latina de religião de Rudolf Otto: Mysterium tremendum et fascinans…. Tremendo porque invoca em nós sentimentos de medo, respeito e reverência. Fascinante porque provoca em nós sentimentos quase contrários aos primeiros, de atração, alegria e confiança. Na Bíblia, ou seja, na tradição religiosa bíblica do judaísmo e cristianismo, estes sentimentos traduzem-se no binómio tantas vezes repetido ao longo da Bíblia de temor de Deus e amor a Deus.

Quando a sociedade agrícola, sobretudo com o cultivo de cereais, permitiu uma certa estratificação social, a figura do sacerdote foi das primeiras a surgir, pois a religião nas sociedades primitivas englobava a cultura em geral, todas as outras atividades, ou seja, tudo o que não era agricultura.

O sacerdote era a pessoa que executava os rituais religiosos à divindade, lia e interpretava os textos sagrados e mantinha o local de culto. Era um intermediário entre a divindade e o povo. Em todas as religiões judaicas, da Suméria, Egito, Roma, no budismo, no hinduísmo, nas religiões tradicionais africanas ou latino-americanas esta é sempre a função do sacerdote.

Xamãs e médiuns seriam outras versões mais sofisticadas no buscar uma relação e comunicação entre este mundo e o mundo espiritual e divino dos espíritos e de pessoas que já faleceram. Há um ressurgir destas práticas com a religião Nova Era (New Age) que é um sincretismo de muitas religiões, incluindo as tradicionais americanas, asiáticas e africanas.

Nas sociedades primitivas, as lideranças civis e religiosas uniam-se numa mesma pessoa e num mesmo cargo. Vemos na Bíblia que Samuel não desempenhava somente as funções de profeta, mas também as de rei líder do povo e as de sacerdote, intercedendo pelo povo junto de Deus; o mesmo aconteceu com Moisés. Já no tempo de Jesus, o sacerdote tinha também a função de médico, ao poder declarar se alguém estava curado ou não de lepra, para ser reintegrado na sociedade. (Mateus 8,4)

A religião é o que faz com que os pobres não matem os ricos. Napoleão Bonaparte
“Se Deus não existisse tudo seria permitido.” Dostoievski

Os ateus não reconheceriam a veracidade desta afirmação vinda de alguém muito pouco religioso, que ironicamente confere à religião o estatuto de polícia. Um polícia mais eficaz que os polícias reais, porque as pessoas têm mais medo do inferno ou da morte eterna que dos sofrimentos e morte temporal.

Os ateus defenderão que existe uma ética que não precisa de se fundamentar na religião, mas a realidade, porém, parece apontar para o facto de que se os seres humanos tivessem um dia a certeza científica de que não há Deus nem vida para além da morte, as fronteiras entre o bem e o mal esfumar-se-iam. Está no inconsciente coletivo da humanidade que o bem leva ao Céu e o mal ao Inferno.

Se isto desaparecesse, se no inconsciente ou consciente coletivo isto não estivesse presente, decerto 1% da humanidade não poderia ter mais riqueza que os restantes 99%, como acontece hoje. Sorte têm os ricos, que mais de 80% da humanidade acredita na existência de Deus e na vida para além da morte. É a maior garantia para eles de que o “status quo” se mantém. Se assim não fosse, não haveria lei, nem polícia nem exército que conseguisse conter a fúria dos pobres. Por isso Napoleão até tinha razão no que disse…

Em todas as épocas, em todos os lugares onde o ser humano já viveu, o fenómeno religioso nasceu por geração espontânea: havendo seres humanos, há cultura, como forma de entender e viver a vida, e há religião como forma de responder às perguntas que não encontram resposta na ciência. Neste sentido, a ciência tem roubado campo à religião; mas conseguirá anulá-la por completo?

A laicidade ou a morte de Deus fez de nós bons consumidores, mas maus cidadãos, individualistas, pouco solidários e empáticos com a dor humana, pois era a religião que nos congregava em comunidade como filhos do mesmo Pai Deus. Faltando Deus, nada nos une como seres humanos e tudo passa a ser permitido, como diz Dostoievski. Não há ética social que se fundamente em si mesma sem o fundamento em Deus.

Os agnósticos desinteressam-se da religião porque não é possível conhecer Deus; Deus não pode conhecer-se pelo método científico porque é uma pessoa, e as pessoas também não são objeto da ciência. As pessoas não se dão a conhecer a quem não as ama. Conhecer uma pessoa sem amá-la, sem se envolver com ela, sem se dar a conhecer também, seria manipulá-la, tal como o método científico faz com as coisas.

Por outro lado, quanto ao mistério, este tanto envolve a religião como a ciência. Em toda e qualquer ciência há matéria conhecida e matéria desconhecida; por isso se continua a investigar e pesquisar para desvendar. Não se sabe tudo sobre biologia, física, química. Quanto mais se sabe, mais há para saber.
Por isso o mistério tanto envolve a religião como a ciência.

Mas a religião, consoante as respostas que nos dá sobre as questões fundamentais, também dá forma à nossa vida, diz como devemos ou não devemos viver. A ciência também sobre isto não tem opinião, nem nos diz qual é o sentido da vida nem como devemos vivê-la.

Religião, cultura e desenvolvimento
Cada cultura tem a sua forma de conceptualizar a Deus; daí o facto de haver diversas religiões. Para além do fator cultural, a diversidade das religiões tem que ver também com o nível de desenvolvimento ou progresso.

Com a globalização galopante que pretende colocar todos os homens em contacto uns com os outros, o que mais conta já não é a diversidade das culturas, mas o nível de desenvolvimento. Mais do que cultura ocidental ou oriental, fala-se de Norte e Sul. Só existe um modelo de desenvolvimento, como só existe uma natureza humana. Mais que diversidade de cultura, existem povos desenvolvidos, povos menos desenvolvidos e povos primitivos.

Tem-se conotado desenvolvimento com o mundo ocidental, mas eu conotá-lo-ia com a natureza humana. Não há nenhum modelo de desenvolvimento alternativo ao dito ocidental. O oriente (China e Japão) não apresenta um modelo de desenvolvimento alternativo ao ocidental porque não existe alternativa.

Não existe um modelo de desenvolvimento que não passe pela máquina a vapor, eletricidade, motores de explosão, comboios, aviões, carros, televisão, rádio, telefone, computador, Internet, papel, jornais, livros, escolas, universidades… A presença ou ausência destes e de tantos outros elementos define o nível de desenvolvimento de um povo e este nível de desenvolvimento influencia mais a vida das pessoas que as nuances culturais.

Por exemplo, a escrita chinesa e de outros povos asiáticos não é diferente da escrita dos povos ocidentais por um fator cultural, mas sim por um fator de desenvolvimento. Toda a escrita começou por ser pictórica, ou seja, por representar as coisas fazendo um desenho delas. Os hieróglifos egípcios e a escrita cuneiforme da Suméria e Mesopotâmia são antepassados pictóricos dos alfabetos grego e romano que vigoram hoje no mundo ocidental. No que respeita à escrita, o alfabeto é mais desenvolvido que a escrita pictórica, por ser mais simples na era do computador e por fazer o discurso mais fluido entre uma maior diversidade de conceitos e palavras.

Tal como há um desenvolvimento ou progresso científico, técnico e humano, também há um progresso ou desenvolvimento no campo da religião, ou seja, da conceptualização de Deus e da vivência do sentimento religioso inato no ser humano.

Animismo
É a primeira conceptualização do divino. Os nossos antepassados viviam na crença de que tudo era animado; tanto os objetos materiais, animais, plantas, rios, rochas, etc., como os fenómenos naturais, o trovão o raio, o vento, a chuva, etc. e até mesmo o próprio universo, possuíam uma alma, ou seja, qualidades, significados ou poderes espirituais ou sobrenaturais.

Em Portugal há uma frase muito repetida que dá conta deste tempo, “No tempo em que os animais falavam”. Não é que tal tempo alguma vez tivesse existido, mas a crença de que os animais falavam, tinham uma alma e uma personalidade sim existiu.

As religiões antigas pertencem a esta categoria; o animismo ainda existe hoje, mas só em povos que de alguma forma vivem apartados da civilização global como os aborígenes da Austrália, os indígenas da América do Norte, assim como os isolados na Amazónia e certas tribos da Africa.

A bruxaria, New Age, magia e tantas outras superstições são resquícios de animismo ou novas expressões deste na sociedade ocidental. O conferir poder espiritual a certos objetos como a chave, a ferradura, o cornito etc, são resquícios modernos de animismo que hoje não passam de superstições.

Politeísmo
Como dissemos, à medida que o ser humano foi conhecendo e dominando o ambiente que o rodeava, este foi-se materializando. Todas as realidades que o ser humano conhece, controla e domina perdem a sua alma, o seu poder, de alguma forma; este passa para ou é absorvido pelo espírito inventivo do ser humano. Desta forma, foi aumentando a esfera do material e diminuindo a esfera do espiritual. O que o ser humano domina deixa de ter poder sobre ele, sobretudo, deixa de ter poder espiritual, para ser um bem material controlável.

O ser humano com o progresso conseguiu dominar muitas realidades, mas não todas; aquelas que ainda resistiram a ser dominadas adquiriram a natureza de divindades. Ao animismo sucede o politeísmo, a crença de que as principais realidades, poderes e forças da natureza são dominadas por um deus. Com efeito existe um deus para cada realidade, sendo o senhor dessa mesma realidade. Vénus, a deusa do amor, Marte, o deus da guerra, Neptuno, o deus do mar, Cronos, o deus do tempo… O politeísmo existe ainda hoje em certas religiões como o hinduísmo.

Monoteísmo absoluto
A pré-história do monoteísmo acontece quando o ser humano agrupa todos estes deuses e lhes dá um líder – Zeus, na mitologia grega e Júpiter na mitologia romana. Daqui ao monoteísmo é um passo. O primeiro ser humano a proclamar que só havia um deus foi um faraó do Egito chamado Akhenaten, também conhecido por Amenhotep IV, que reinou no Egito no século XIV antes de Cristo, muito antes da cultura grega e romana.

Os povos sedentários têm tendência a ser politeístas; os povos nómadas, pelo contrário, são monoteístas. Os Turkana, um povo nómada do norte do Quénia, têm a mesma palavra para designar Céu e Deus. Os mongóis, os turcos e os tártaros, adoravam um deus comum chamado Tengri, o deus do céu azul.

Daqui a intuir que Deus é um ser espiritual, foi um passo muito curto dado pelos judeus, também eles nómadas. Para estes, Deus era espiritual e estava em toda a parte, dentro da nossa mente e sobretudo no nosso coração, em todo o tempo e em todo o lugar. Era um ser pessoal pois era um Deus de pessoas, de Abraão, Isac e Jacob. Intuíram também que era um Deus criador de tudo e de todos. Hoje, monoteístas absolutos são, portanto, os judeus e os muçulmanos.

Monoteísmo trinitário
É a versão cristã do monoteísmo ou, na era da teoria da relatividade, é a relativização do monoteísmo absoluto dos judeus e dos muçulmanos. Se o Homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, e Deus é amor, o amor implica uma relação de pelo menos duas pessoas; o objetivo de uma relação ou um matrimonio, não é o olhar um para o outro, mas os dois na mesma direção, o que frequentemente toma a forma de um filho. Então, nem Deus nem o Amor são “mono” nem “estéreo”, mas sim tridimensionais.

Este Deus que é uma comunidade de amor criou o homem à sua imagem e semelhança, pelo que também o ser humano é uno e trino, estando chamado a ser uma comunidade de amor; à Trindade de Deus corresponde uma trindade humana.

A pessoa humana é livre, autónoma, indivisível e independente e, no entanto, não se explica por si mesma, precisa de outras duas pessoas: o seu pai e a sua mãe, com as quais forma um triângulo. Pai, mãe, filho(a) são as únicas categorias de vida humana; todo o ser humano pertence sempre a duas delas.

Um homem não é pai sem ter uma esposa e um(a) filho(a); uma mulher não é mãe sem ter um marido e um(a) filho(a), todo o ser humano é filho(a) de um pai e de uma mãe; não existem mães solteiras. A Trindade consiste em que um indivíduo não existe sozinho, mas coexiste com outros dois; a existência de um implica sempre a existência de outros dois, com os quais tem laços afetivos, formando um triângulo de amor.

Ateísmo
Para o ateísmo, não existe nenhum Deus além do universo ou no universo. Afirma que o universo físico é tudo o que existe. Tudo é matéria autossuficiente. Pensamento de Feuerbach por parte da filosofia de Karl Marx – por parte da filosofia quanto ao seu materialismo dialético e por parte da economia quanto ao seu materialismo histórico. Outro expoente ateu por parte da psicologia foi Sigmund Freud.

Os crentes não podem provar cientificamente a existência de Deus, os não crentes também não podem provar cientificamente a sua inexistência. Pelo que o ateísmo é a crença na não existência de Deus. Uma crença que vai contra o sentimento religioso inato no ser humano.

A este sentimento religioso se refere de alguma forma a anedota que diz: o homem é comunista até ficar rico, feminista até se casar e ateu até o avião começar a cair. Ou ainda o que se concebe como ateu por estar na moda e porque ainda não adaptou o vocabulário à sua nova crença, chega a dizer, “Eu cá sou ateu, graças a Deus”.

Niilismo
De onde vimos, para onde vamos, que sentido tem a vida, são as três perguntas que todo o ser humano se faz quando, pelos 6 ou 7 anos, atinge a autoconsciência, ou seja, se conhece como pessoa. Se vimos do nada e vamos para o nada, como afirmam os ateus, que sentido tem a vida? Acaso algo que começa em nada e termina em nada pode ter algum sentido? Neste sentido, o niilismo é um fruto ou produto natural do ateísmo.

Sem futuro, o presente é nauseabundo por mais prazenteiro que seja. Assim o experimentou Sartre, Nietzsche antes dele e Camus depois dele: “se vens do nada, não há Fé, se vais para o nada, não há Esperança, o mais certo é que não haja Caridade pelo que a vida carece de sentido, é nauseabunda. Ante isto, ou cometes suicídio como Nietzsche, ou disfrutas dos prazeres do mundo material e morres de uma qualquer sobredose, ou tornas-te num filantropo e disfrutas da alegria que te proporciona o bem que fazes aos outros, porque há mais alegria em dar que em receber.

Agnosticismo
Como não se pode conhecer a Deus, ou conhecê-l´O totalmente, o agnóstico, como já dissemos, desinteressa-se do tema, coloca-o de parte. Porém, como dissemos também, não é só Deus que está meio envolto em mistério, toda a ciência também o está. Por isso, esta atitude de a-gnosis, ou seja, de negar o conhecimento aplicada às ciências paralisaria o progresso científico pois paralisaria a investigação. Como não posso conhecer tudo sobre a biologia, física e química, não me interesso, não quero conhecer.

Suspeito, por outro lado, que esta atitude do ponto de vista mais humano, é a de evitar responder às três perguntas fundamentais do ser humano: de onde venho, para onde vou e que sentido tem a vida, para evitar cair no niilismo. Ou seja, é a atitude da avestruz que, ao ver o perigo, esconde a cabeça debaixo da areia.  

Prova contundente da existência de Deus
Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé e permaneceis ainda nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que morreram em Cristo, perderam-se. E se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram. Porque, assim como por um homem veio a morte, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. E, como todos morrem em Adão, assim em Cristo todos voltarão a receber a vida. 1 Coríntios 15, 17-21

Parafraseando S. Paulo, se Cristo não ressuscitou, se não existe Deus nem vida para além da morte, somos os mais desgraçados de todos os seres vivos que habitam este planeta. A evolução da não consciência para consciência, ou como Karl Marx diz, somos o momento em que a natureza ganha consciência de si mesma, não teria sentido. Para que ganhámos nós consciência?

Para termos consciência da nossa miséria? Para, ao contrário dos outros seres vivos, sabermos que um dia vamos morrer? Para sentirmos tristeza sempre que fazemos anos e vemos como as forças vão definhando, a beleza vai desaparecendo e a doença vai ganhando terreno? Ao menos os seres vivos estão poupados a este sofrimento, pois não sabem nem que vão morrer nem sequer que existem, pois não são auto-conscientes.

Para que serve a possibilidade de optar? Para poder cair em mil e uma armadilhas e poder fazer da nossa vida um inferno? Ao menos os outros seres vivos vivem sempre felizes, não têm a capacidade de arruinar a própria vida e ser infelizes.

E para quê todo o trabalho e esforço, se terminamos todos de igual maneira? E se o fim do ser humano é o mesmo que o da pulga e da barata, em que pode este ser humano dizer que é superior a estes seres vivos? Só se for superior em sofrimento, em tristeza e em desespero se, de facto, o fim de todos é o nada.

Se há sede tem de haver água; se não, não haveria sede. Todas as experiências dos que estiveram entre a vida e a morte, entre o aqui e o além, falam de uma luz, de uma felicidade. Ninguém, até ao momento, falou do nada, do vazio, do deixar de existir.

Segundo o famoso argumento ou aposta de Pascal, suponhamos que dois amigos - um ateu e outro religioso – apostam uma quantia de dinheiro na hipótese da existência ou não existência de Deus e da vida para além da morte. O ateu aposta que Deus não existe, o religioso que sim, existe. À morte dos dois, se o ateu ganhar a aposta, ou seja, se não houver nada para além da morte, não vai poder receber o prémio, não vai sequer saber que ganhou e que o religioso perdeu.

Pelo contrário, se houver vida para além da morte e Deus que a sustém, o religioso ganhou essa vida eterna e o ateu perdeu-a. Concluímos que quem acredita tem tudo a ganhar e nada a perder; quem não acredita, tem tudo a perder e nada a ganhar.

Conclusão – Os conceitos de religião e cosmovisão englobam-se mutuamente. Todas as cosmovisões têm uma religião ou uma anti religião, e todas as religiões têm uma cosmovisão.
Pe. Jorge Amaro, IMC